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21 de março de 2010
LOKI: UMA HISTÓRIA DE AMOR
As palavras rodeiam Arnaldo Batista, o gênio musical de Os Mutantes reconhecido tardiamente pelos ingleses e, de tabela, pelo Brasil (que o havia esquecido), mas jamais conseguem alcançá-lo: rock, psicodelia, pop, música brasileira. No documentário Loki, de Paulo Henrique Fontenelli para o Canal Brasil, até bossa nova girou ao redor da luz que emana de sua personalidade. Mas a palavra mais apropriada, e que cabe nele em todas as fases de uma vida criativa, explosiva, exilada, complicada e que encontrou a ressurreição e a glória, é amor.
O amor de Arnaldo por sua primeira namorada e esposa, Rita Lee, toma conta de uma bom trecho do filme e quase o confina num rodopio autista (tanta gente sem importância falando sobre o que se passou entre eles...). Mas o que se sobressai, se sobrepõe, se impõe, se destaca é o amor de sua atual mulher, Lucinha Barbosa, que o pegou no chão, na pós-tentativa de suicídio e o retirou da roda vida paulistana para fazê-lo reintegrar-se consigo mesmo num lugar isolado. Essa relação sustenta e costura o filme, provando que a mulher escolhe o homem e este, quando é escolhido, pouco ou nada lhe resta a fazer, enquanto ao tentar escolher, descobre quem dá realmente as cartas.
Mas a palavra amor tem uma amplitude maior, já que Arnaldo Batista colocou a busca da espiritualidade em primeiro plano, deixando de lado a carreira e nem querendo viver do que tinha feito na juventude. Só o que ele produziu junto com o irmão Sérgio, a mulher Rita, e os músicos que os acompanhavam, o colocaram no mais alto pódio da música internacional. “Melhor do que os Beatles”, disseram nos depoimentos dois músicos. “Querem escutar algo que os deixará abismados?” pergunta outro. “Os Mutantes sintetizavam todos os gêneros numa só frase musical, diferente dos Beatles, que faziam uma colagem de gêneros”, diz mais um.
Foi sorte nossa a existência desse amor tardio, mas providencial, da atual esposa, e desse amor eterno, do som que sai dele para o deslumbre geral. Fez com que voltasse à tona, depois que o Brasil tinha resolvido enterrar mais um dos seus grandes talentos, a sina do país que se auto-devora, como se a grandeza fosse nossa principal culpa. Dá dó ver figuras vazias fazendo caras e bocas para falar de Arnaldo, umas estrela que brilha além das arqueadas de sobrancelhas e o fechar de olhos para reforçar abobrinhas. Dá dó ver um dos músicos dos Mutantes achar graça do fim do casamento e da banda.
Ao mesmo tempo, é um alívio ver Kurt Cobain ou Sean Lennon falarem um tempão sobre a importância e a qualidade de um brasileiro que fez História. É uma vocação que não temos, o de admirar os outros, de reconhecer, de lutar para que sejam vistos e ouvidos pelo público. A tendência no Brasil é eleger meia dúzia de imbecis para gritarem décadas nos palcos como se fossem grandes artistas, quando não passam de contrafações. Enquanto isso, nossos criadores amargam o exílio interno, como aconteceu com Tom Zé (que trocou várias vezes de roupa nos seus depoimentos para o documentário para representar as muitas fases da vida de Arnaldo), até que de novo os estrangeiros vissem nele todo o valor que aqui tinha sumido pelo ralo.
O amor, em Arnaldo Batista, junto com sua formação (a mãe, concertista de piano, aparece pouco no filme, infelizmente) o leva por todos os gêneros numa só frase musical, e pontua sua obra melodiosa, tocante, profunda. Pessoa querida por todas, cruzou os umbrais dos preconceitos. Quem o chamava de louco, agora tem de enxergar o gênio. O criador sem carreira é o mais bem sucedido, pois é aclamado por onde se apresenta (as novas gerações brasileiras quiseram saber quem era esse músico que tinha feito tanto e estava no limbo). O que parecia psicodélico era apenas liberdade criadora. O que dizem ser rock era uma composição e interpretação sem rótulos. O que tem tudo para ser brasileira, é apenas a recriação do que há de mais forte no mundo todo, inclusive no Brasil. Por isso as pessoas se curvam diante do menino grande, com a cara marcada pela dor. Por isso quem fala sobre ele no filme diz que ama esse artista único.
Um dia fui ver um show dele em São Paulo. Estava a serviço da Ilustrada, da Folha de S. Paulo. Entrevistei-o em 1977 (ou será que foi 1978?), na época em que ele tinha uma banda, o Patrulhas do Espaço, que achei fraca. Elogiei a performance chapliniana no palco, pois ele fazia questão de surpreender todas as expectativas para mostrar algo silenciosamente hilário. Tocou pouco, e também falou pouco na entrevista no seu apartamento de janelas todas fechadas.
Estive frente a frente com essa mansidão reticente, esse invólucro que guarda o melhor de nós e às vezes sai para a rua a brilhar como uma supernova.
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