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14 de março de 2010

CLARO/ESCURO: O ESPORTE DESARMA O CONFLITO



The Blind Side, de John Lee Hancock, Oscar de melhor atriz para Sandra Bullock, e Invictus, mais uma obra clássica de Clint Eastwood, ambos de 2009, são dois filmes sobre relações raciais e esporte, no caso o chamado futebol americano e rugby, respectivamente, duas modalidades irmãs, mas não idênticas. As diferenças entre os dois filmes, afora a qualidade cinematográfica, que em Clint sobra, são importantes.

Invictus, que é título de uma belo poema do britânico William Ernest Henley (1849-1903), sobre a vontade que decide o destino, aborda a força política do perdão. Narra a costura do estadista Nelson Mandela da África do Sul, nação dividida e recém saída do apartheid, nos anos 90. A fragilidade da situação, em que tudo apontava para a vingança da população pobre que pela primeira vez era representada na política via voto direto, exigiu que o novo presidente adotasse uma postura reguladora das relações entre as duas facções. “Vocês me elegeram seu líder, me deixem que os lidere agora”, diz Mandela interpretado por Morgan Freeman, contrariando os que queriam destruir o time de rugby, que significava a hegemonia branca no auge da repressão.

The Blind Side (que se refere ao lado cego do atacante do futebol americano, que deve ser protegido por um player poderoso, de grande massa física) trabalha a favor da política de inclusão social estabelecida nos Estados Unidos por meio do esporte. Convidar atletas negros para as universidades que precisam reforçar suas equipes é um expediente exposto a inúmeras críticas, mas o filme cuida de justificar tudo. Sandra Bullock cresce ao longo da trama no papel da esposa do bem sucedido empresário de lanchonetes populares. Ela vive com a família sem conflitos numa mansão, mas não fica satisfeita sem ajudar os outros exercendo a caridade cristã. Republicana, chega a contratar uma professora particular democrata para que o filho adotivo, Big Mike (interpretado por Quinton Aaron), possa ser aceito no time da escola.

Clint prova que é o grande herdeiro dos mestres do cinema de autor da indústria cinematográfica americana ao iniciar seu filme com uma cena antológica: a passagem de Mandela libertado numa estrada que divide dois campos esportivos, um do rugby branco e outro do futebol negro. Em poucos segundos, ele mostra o apartheid representado pelo esporte e foca o filme na necessidade de romper a barreira, para que a nação “com fome de grandeza”, como diz Mandela, pudesse cumprir o seu destino. E esse destino era ganhar a copa do mundo da modalidade, que seria realizada na África do Sul em 1995. O filme é esse projeto de rompimento de barreiras por meio de costura valente e lúcida, empreendida por um herói do nosso tempo. A cena final, em que os negros jogam rugby, mostra o sucesso desse esforço.

O heroísmo da rica dona de casa americana, que se destaca entre suas amigas indiferentes e vazias por meio de atitudes corajosas, é de outra natureza, já que faz parte do voluntarismo pessoal e não de uma ação política (embora tudo seja político, como todos sabem). No fundo, o filme coloca Big Mike como uma força da natureza, com deficiência de entendimento, e que só compreende as coisas por meio de demonstrações explícitas, como gestos e frases curtas. O nível infantil do personagem gigantesco é representado pela grande amizade com o novo irmão branco, que é um décimo da sua altura e um terço de sua idade.

O gesto solidário da protagonista é colocado em cheque por uma investigação que cede à primeira frase sorridente do investigado, mostrando que a narrativa tem a clara intenção de justificar a política de inclusão por meio do esporte contra todas as críticas. Esses defeitos podem colocar o filme para baixo, ainda mais que usa o velho expediente do clip na fase de treinamento do atleta. Mas o aspecto aparentemente bizarro da história intensifica a carga dramática do filme, que começa chocho e sobe para um patamar emocionante. É uma grande qualidade que não deve ser menosprezada.

O esporte é a representação do conflitos que, nos dois filmes, serve para desarmar os espíritos. Esse paradoxo é o que os torna interessante, no caso de The Blind Side (traduzido aaqui pelo batido Um Sonho Possível), e magistral, nas mãos de Clint. Li algumas reparos de que o grande diretor usou uma série de clichês. O que Clint faz, em alguns momentos, é o uso pessoal de soluções cinematográficas consagradas. O ponto final filmado em câmara lenta e arrancando o delírio esperado da platéia é um deles. Funciona, emociona. Quem resiste?

Isso não significa que devemos justificar truques de cinema. É preciso estabelecer diferenças. No claro/escuro das relações raciais intermediados pela representação do conflito via esporte, vale a competência de fazer cinema. Ambos os filmes não caem nos vícios da edição da câmara nervosa e são enxutos, limpos, com uma narrativa consagrada e objetiva. Isso destaca a grande performance dos atores. Morgan Freeman, costumo dizer: vejo tudo dele, o cara é um imã. E Sandra, depois de tantos papéis ótimos, merecia seu Oscar, mesmo que possamos duvidar das boas intenções do filme. Vale o que aparece na tela: a frágil falsa loura enfrentando preconceito para adotar seu gigante e a alegria de vê-lo bem sucedido.

São duas histórias reais que inspiraram obras com um encantamento raro hoje, quando tudo explode e os scripts obedecem a gambiarras narrativas toscas. Você pode não concordar com o que esses dois filmes, muito bem amarrados, querem dizer, mas não pode deixar de se encantar com o que eles mostram e são.

RETORNO - Imagens de hoje: Sandra Bullock e Quinton Aaaron, Morgan Freeman e Matt Damon: interpretações que fazem o encanto da Sétima Arte.

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