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29 de janeiro de 2010

QUEM SABE, ENSINA


É chato falar dessas coisas, pois já tem muito assunto mala exigindo nossa atenção. Mas pensar sobre nossa profissão deve fazer parte da atividade, sob pena de deixarmos um vazio que logo é preenchido pelos oportunistas, que acabam ganhando os tubos para pontificar obviedades. Quem faz, sabe, e deve dizer. E quem sabe e diz, ensina. Aprende quem tem juízo.

O jornalismo sozinho não faz verão. Isso não significa que deva ser desconstruído em função do faturamento. Manter a essência da atividade – que é reportar fatos selecionados pela edição – sem se transformar num circo de cavalinhos, é o caminho seguro para a sobrevivência dos veículos. Mas isso não tem sido levado em consideração.

O motivo principal não é apenas a cretinice – embora isso influa bastante – ou o marketing equivocado (o imediatismo e a necessidade de fazer caixa rapidamente), mas o entorno das redações: as instituições democráticas, ameaçadas pelo continuísmo político e a crescente ação da censura; a situação econômica do país, em que o endividamento é hegemônico (até as grandes redes do varejo se transformaram em agentes financeiros), os direitos da cidadania, em baixa, basta ver o resultado da falta de políticas públicas.

Sem o entorno sólido, não adianta querer ser jornalista. Numa hora ou outro, te pegam. Aí tudo fica reduzido ao que vemos diariamente. Quando o bairro inunda, o jornalista não tem que arrancar declarações de como as pessoas perderam tudo ou lamentar em pitacos editorialistas a tragédia que se repete cada vez com mais intensidade. Também não tem de ficar convocando especialista. O sabichão tem por objetivo confinar a lógica longe do jornalismo, num curral identificável, que passe lotado pela sucessão de mortes e da incompetência dos jornais. O que então é preciso fazer?

Dou um exemplo. Sumiram seis jovens em um mês em Luiziânia, Goiás. O noticiário disse isso, que morreram misteriosamente seis garotos num curto espaço de tempo. Não segui o assunto, mas na época em que eu li ficaram esperando a próxima declaração das autoridades. Ou seja, o repórter não foi lá fazer a reportagem. Quem eram realmente as vítimas, o que existia de comum entre elas, qual o depoimento de vizinhos e parentes, se houve antecedentes, o que diz a investigação policial, se é que houve ou está havendo.

O jornal precisa cobrir o evento diariamente, ir em cima, fazer o serviço completo. Não pode é ficar dependurado nos releases como os velhos inadimplentes que se arrastavam na boléia dos bondes antigos para escapar do cobrador. Um jornalismo a reboque das versões oficiais dos fatos se reflete nos textos, que estão cheios de “no entender” de fulano. Quem escreve “no entender” participa do cerco da mediocriade. Para rompê-lo, só com jornalista competente, o que inclui fôlego, preparo e talento.

Não exigem mais nada porque o espaço editorial está prenhe de inutilidades. Concursos de beleza de adolescentes sub-nutridas, farto noticiário sobre o vai e vem da publicidade, links nos shoppings em dia de compras, separação ou não de Jolie e Brad Pitt, o fenômeno Lady gaga. Aí o espertalhão do Steve Jobs lança o milésimo badulaque eletrônico, cada vez maior (daqui a pouco chegam ao cinemascope) e todos acham o supra-sumo da cocada preta.

O jornalismo não pode ficar nas mãos do Steve Jobs ou da Microsoft. Mas sim nas mãos do jornalista que luta o bom combate. A emergência de novas ferramentas não elimina o acervo acumulado na profissão. Mas idade não é virtude e a análise pode partir de todo tipo de jornalista. Instaure-se a interlocução para exercemos um papel nas mudanças

A experiência precisa ser convocada para a análise. Não basta passar uma vida nas redações e retirar-se.O jornalismo precisa de informação sobre si mesmo. Não se pode deixar esse trabalho na mão de quem não sabe o que é uma redação. A atividade jornalística deve ser objeto da investigação de quem produz. A análise empírica do ofício faz falta. Chega de comunicólogos e consultores .

O desafio é grande. Um texto nunca fica pronto. Sempre é possível reescrever. Antes, as versões iam para o lixo. Agora elas coexistem, simultâneas, na internet. O prazer da leitura só voltará aos jornais quando o talento for hegemônico e a mediocridade perder todo o poder.

A ferramenta mais poderosa do jornalismo ainda é a alfabetização. Quem usa "por conta, sinaliza, dia desses" não tem iPad que conserte. Precisamos nos livrar de alguns vícios que tomaram conta da atividade jornalística. Por exemplo: o andar da reportagem ao lado da fonte até o núcleo do tema é falso, combinado antes. Quando o (a) repórter de TV convida a fonte a caminhar junto até o assunto, é sinal que a narrativa linear ainda domina, entre nós, a mídia visual.

É como o cumprimento entre apresentadores. Eles já se encontraram várias vezes antes, mas se dizem bom dia quando vão ao ar. O noticiário começa a mentir aí.

RETORNO - Imagem desta edição: Charlton Heston como Moisés no filme Os Dez Mandamentos. É o sonho de consumo do Steve Jobs, que cada vez aumenta mais a tela dos seus badulaques.

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