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2 de janeiro de 2010

PABLO NERUDA: HISTÓRIA GERAL


Nei Duclós

Neruda perdeu a terra e tenta recuperá-la através da poesia. Mas o que aparece neste livro (*), primeiro dos cinco volumes do seu "Memorial de Ilha Negra". escrito aos 60 anos, não é apenas o Chile (c. por extensão, a América Latina), mas principalmente a destruição da sua identidade pessoal. O poeta se debruça sobre sua infância, sobre sua cidade, e reconstitui esse processo de destruição para se redescobrir e recuperar o fio, apesar de saber que nunca será o mesmo c que está condenado, como todos, a uma viagem sem volta. No seu caso, essa viagem o levaria ao breve tempo de esperança no governo Allende e depois à morte, nos dias terríveis de setembro de 1973.

É por isso que Neruda não deixou, como herança, apenas uma descrição de sua terra, mas sua caminhada, sua tentativa de humanizar o homem destruído pela pressão social, sua vontade de recompor o mundo à imagem pura das matas de Temuco, onde "do machado e da chuva foi crescendo a cidade madeireira recém-cortada como nova estrela com gotas de resina".

Descobertas — O livro é sobre a descoberta do mundo, os primeiros passos do poeta, suas revelações através da dor, sua passagem para novos estados de consciência que, ao mesmo tempo, o afastavam de suas raízes. Esse mundo nasce da cidade madeireira. da descoberta emocionada dos pais, da experiência de terror e lucidez nas matas e no mar, da adolescência tímida que descobriu o sexo, o colégio, o livro, e o levou à poesia, ao medo na capital e à rotina na pensão da rua Maruri.

Pelos olhos de Neruda passeiam as assombrações do seu Tio Genaro que veio das montanhas, as paisagens da terra — como nos poemas "Lago dos Cisnes" e "A Terra Austral" — e do povo, como em "A Injustiça" e "O Trem Noturno". E. principalmente, a mudança do seu rosto, como neste trecho de "O Menino Perdido": "E de repente apareceu em meu rosto um rosto de estrangeiro c era também eu mesmo: era eu que crescia, eras tu que crescias, era tudo,. e mudamos e nunca mais soubemos quem éramos, e às vezes recordamos aquele que viveu em nós e lhe pedimos algo, talvez que nos recorde, que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos com sua língua, mas desde as horas consumidas nos olha e não nos reconhece".

Memória social — Talvez só a poesia possa redimir o exílio, pois joga com a memória afetiva, redescobrindo o clima dos acontecimentos e as dimensões do homem nas suas viagens pelo furacão. Recompõe assim a história pessoal de uma coletividade, procura um rosto que permaneça e reine acima da perda, do eterno sentimento de derrota, dos foragidos que trocam de mundo também por que são empurrados, e não somente por sua sede de aventura. Neruda, apesar de eterno passageiro desse trem que nunca pára, procura a memória social através de sua existência individual, recuperando a terra perdida apenas cumprindo seu destino de poeta e cidadão do mundo.

A história de Neruda, por sorte, é a história do povo. Nascido da chuva, da madeira, do pão e do vinho, ele é capaz de se identificar com os movimentos da terra e do tempo, retratando a aventura numa época de dispersão e miséria. Por ter descoberto a identificação do seu destino com o destino do Chile, que por certo renascerá, pode-se dizer que Neruda, como todos os grandes poetas, é a pátria procurada pelos abandonados, pelos que foram varridos da sua terra, tanto pelo tempo como pela guerra. Felizmente, a tradução de Carlos Nejar conserva essa mágica experiência, através de um bom senso criativo, sem pretensões e exato. E há a vantagem de ser uma edição bilíngüe, onde Nejar mostra-se útil até o fim.

(*) MEMORIAL DE ILHA NEGRA — VOL. I: DONDE NASCE A CHUVA, de Pablo Neruda; tradução de Carlos Nejar; Salamandra; 86 páginas; 50 cruzeiros.

RETORNO - Resenha publicada na seção de Livros da revista Veja em 1976.

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