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7 de dezembro de 2009

SHAKESPEARE DE CHUTEIRAS


O drama shakespeareano tomou conta do campeonato brasileiro, que terminou ontem com o Flamengo campeão. O principal foi a hamletiana dúvida do Grêmio que antecedeu o jogo de ontem no Maracanã, em que uma vitória sua daria o título para o Internacional, desde que o colorado ganhasse do Santo André, o que de fato aconteceu. Abordei aqui esse assunto no texto “Drama na última rodada” . Para resolver o “ser ou não ser” escrevi que não haveria marmelada. Mas, como a célebre pergunta de Shakespeare, a dúvida permaneceu no ar, já que os gaúchos foram sem oito titulares e pareceu, para muitos, que amoleceram na fase terminal da partida. Eu vi um jogo limpo, disputado, como eu tinha previsto (como dizem os narradores esportivos, que sabem tudo antes), em que o Flamengo quase dançou (um golzinho e kaputt).

Falando em narradores esportivos: deve ser confortável ser um espírito tosco. O comentarista de árbitros (!) da Globo disse textualmente no início da partida que não ia acontecer nada. Ele quis dizer, acredito (nunca se sabe), que torcia para não haver sururu, como houve no Fluminense x Coritiba, em que Fred e companhia despacharam o Coxa para a segunda divisão e garantiram a permanência na série A. Mas o comentarista de árbitros, que árbitro foi (!) não alcança os meandros e armadilhas da linguagem, então fala besteira. As emissoras não entendem que comentar futebol não é futebol, é linguagem. O cara não precisa ser jogador para analisar, precisa saber analisar.

Para não ficar atrás, o narrador passou o tempo todo gritando “olha lá o Adriano”. Claro, com tanta carga em cima, o pobre do Adriano não conseguiu marcar seu gol de despedida. Por que a ameba insistia no seu grito? Porque, se Adriano de fato marcasse, ele “já tinha dito antes”. Prever, eis o verbo favorito da cobertura esportiva. Dá status, condecora os sabichões.

Na peça MacBeth, de Shakespeare, a premonição das bruxas acaba em desastre. Elas anunciam que MacBeth será rei, então o guerreiro benquisto pelo monarca resolver tomar o trono de assalto, já que ele iria mesmo ser coroado. Comete crimes, traindo e matando pessoas chegadas, sob o álibi de que assim estava escrito. Para o São Paulo, estava certo que seria o campeão, mas entrou pelo cano. Para o Palmeiras, que teve de marcar passo por nove rodadas para enfim chegar em quinto lugar, parece que houve o contrário do drama shakespeareano. Já que o título estava, de antemão, garantido (as pitonisas anunciavam) então não fizeram mais nada, esperando a consagração. Acabou em briga feia no gramado entre dois jogadores e a desmoralização do técnico Muricy.

Pois Muricy Ramalho nos leva de volta a Hamlet. Ele era o técnico do São Paulo, foi demitido e passou-se para o inimigo, o Palmeiras. Quis que todos encarassem isso como normal, já que sua desculpa é que foi demitido. É óbvio que foi vingança. O ressentimento orientou sua passagem para o Verdão. Ele queria, como Hamlet, vingar-se da “mãe” (o time que o acolheu por tantos anos), que o renegou. Ser ou não ser? Ser tricolor ou ser palmeirense? Nem um nem outro. O Palmeiras implodiu com essa contradição no miolo da sua ação. Não era possível fluir quando algo tão poderoso e profundo travava o caminho. Havia também o choque Wagner Love x Obima, o ídolo comprado no meio do campeonato e o ídolo que estava crescendo e viu seu lugar ser usurpado. Os dois caíram. É muito rolo.

E como podemos comparar o Fluminense, com sua arrancada deslumbrante, saindo de maneira gloriosa do rebaixamento? É puro Henrique V . Aquele discurso, ponto alto da carreira de Kenneth Branagh, em que ele convoca os soldados, em inferioridade numérica, para o grande combate do dia de São Crispim, faz levantar as pedras. Foi isso o que aconteceu. Sob orientação de Cuca e com seu gols, Fred levou o pequeno exército para uma jornada inesquecível.

Resta ainda Andrade, o general Otelo, e seu grande amor, o Flamengo, a bela Desdêmona, que não podia, a princípio, cair nos braços do mouro. Otelo provou que merecia a donzela e ficou com ela. Só que, neste caso, por enquanto, o caso acaba em triunfo e não em tragédia. Ainda não chegamos, nem, acredito, chegaremos, às cenas letais de ciúmes.

Para um país que, na política, caiu na pornochanchada, o futebol resgata nossa grandeza. Com seus conflitos deste campeonato inesquecível, o esporte nos remete ao gênio da dramaturgia universal, o poeta que , esse sim, viu antes, viu tudo, de maneira clara e incontestável.

RETORNO - Imagem de hoje: Keneth Branagh no seu inesquecível Henry V, de 1989. Quando escrevi "drama" no post de 1º de dezembro, pensei em Shakespeare. Depois, vi que não tinha citado o poeta. Num telefonema, Tabajara Ruas disse explicitamente, comentando o Grêmio e o seu Colorado: "É um drama shakespeareano". Na mosca. Taba, atual vice-campeão, tem, portanto, valiosa participação no enfoque deste post.

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