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16 de dezembro de 2009

PARA ENTENDER SUSAN BOYLE


A esplêndida erupção do fenômeno Susan Boyle na mass media do século 21 nos coloca contra a parede, obrigando-nos a fazer algo desconfortável, pensar. O gostoso é ficar na nossa, achar que ela é uma típica representante da easy music e que seu mega-sucesso está ligado à sensibilidade rasteira do público e sua endêmica falta de exigências. É complicado: pode até ser uma obviedade embalada para agradar em época de Natal (o disco tem o clássico Noite Feliz, que na versão americana é Silent Night). Mas o evento pega mais fundo.

Para começar, não existem mais vozes, superstars da linhagem de Susan Boyle, o que em tempos não tão remotos existiam aos potes. O que há hoje é a sincopagem ruidosa de gargantas guilhotinadas pelo hip hop, a sacudição pornô da Madona, o festeirismo fake das Ivetes Sangalos. Não há mais uma Elizete Cardoso, nem mesmo uma Barbra Streisand, que anda sumida (pelo menos não está tão presente como deveria). Existia esse vácuo de uma grande voz feminina que cantasse coisas obsoletas – canções com melodia, harmonia e outras sutilezas técnicas que foram arrastadas pela ganância do dinheiro fácil do atual sistema econômico internacional, não baseado em indústria e comércio, mas em falsidades improdutivas. Susan Boyle é candidata a ocupar o espaço deixado vago à força.

Ela surgiu de maneira transversa, num programa de calouros. O amadorismo tem uma chance nesse tipo de vitrine. Costumava revelar grandes talentos. No Brasil, muitos surgiram assim, como Elis Regina e tantos outros. Mas como tudo foi amarrado, aprisionado, manipulado, os programas de calouros deixaram de exercer sua função de revelar talentos. Susan Boyle aproveitou-se de uma exceção. Os britânicos são muito metidos e fazem coisas abandonadas em outros lugares. E fizeram bem, colocando na roda uma interpretação que explodiu, o hoje já clássico I dreamed a dream, que é o título do cd lançado recentemente por SB e que já chegou ao meio milhão de cópias vendidas, mesmo estando disponível inteiro no you tube.

Você não precisa comprar o disco para escutar as faixas. Mas as pessoas vão lá e adquirem o produto, o que deve deixar os executivos responsáveis pela produção e difusão do fenômeno encantados. SB rompe com o paradigma de que deve-se proibir tudo, o que é impossível, para garantir o pagamento de direitos autorais. Deixa rolar, mostra, escancara, que as pessoas quando compram não querem apenas escutar, querem ter, querem guardar, presentear, pegar, gostar de ficar junto. Um produto cultural assim transcende seu conteúdo, ele se torna um objeto próximo, ele ocupa lugar na casa.

As canções escolhidas por SB estão na rede, portanto não vou elencar aqui. Mas gosto de saber que ela, ou seus orientadores, escolheu grandes músicas, que estavam dispersas por aí e que ganham um resgate oportuno. É preciso lembrar que existia algo chamado música, abandonado pelo massacre da serra elétrica que é a indústria cultural do tunc tunc de hoje. Ao mesmo tempo, SB não se derrama como em muitos esganiçamentos pop. Ele tem uma contenção básica, mantém suas interpretações em roupagem de gala, sem se atirar como gana nas distorções vocais , que é a praga que assolou nossas maiores vozes.

Permanecer nessa base em que foram construídas tantas canções memoráveis, não deixar que seu acervo se perca em perversidades metidas a besta, centrar no fundamental, levantar vôo quando necessário, tolher-se quando a música pede, eis algumas qualidades da cantora que ficou na sombra por tanto tempo. E por que ainda não tinha vindo à luz? Exatamente porque o sistema impediu que vozes como a dela emergissem. O pecado é deixar tudo a seu encargo. É preciso desamarrar as camisas-de-força que mantém tanta gente fora do circuito.

Precisamos de um milhão de Susan Boyles para termos de volta uma Billie Holliday. A grandeza não surge de graça. Ela vem de longe, vem do fundo, vem da diversidade, das oportunidades. É preciso apostar que nada se perderá e que todo esse pesadelo em que se transformou o chamado “som” seja erradicado da terra. Queremos de volta Frank Sinatra. Ou seria pedir demais?

Nem todo fenômeno de massa deve ser colocado no alto forno de nossas convicções pseudamente corretas. Quando duplas urbanas ágrafas e sem formação musical berram barbaridades para platéias de mãos ao alto, devemos desprender os paredões que guardam avalanches de pedras. É preciso dar uma lição nessa canalha. Mas quando Susan Boyle surge de repente, abrindo a voz diante do mundo, precisamos prestar atenção. Alguma coisa está acontecendo de novo.

É uma questão de justiça: conheci grandes cantores que jamais vieram à tona. Até mesmo Zé Kéti, ouvido absoluto e voz de ouro, foi deixado de lado quando ainda estava vivo. Não havia clima. Agora, quem sabe, possamos te algo...

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