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26 de outubro de 2009
O PERDÃO EM “A PARTIDA”
Para que serve o perdão em A Partida (Okuribito), de Yojiro Takita, vencedor de melhor filme estrangeiro no Oscar 2009? Vamos adiar a resposta com outra pergunta: por que este é um filme sobre o perdão, se a crítica quis reduzi-lo a uma indecisão entre comédia e drama, achando que o diretor se perdeu no meio do caminho e que teria feito uma obra “oscarizável”, ou seja, na medida para ganhar o prêmio, já que se entregou ao lugar comum e à inconsistência da trama?
É porque, não canso de dizer, a crítica não enxerga o que é mostrado na tela, preferindo ficar acima do trabalho alheio e desconfiando de suas intenções, principalmente se for um vencedor. E o que é mostrado na tela é uma sucessão de cenas sobre o perdão numa história que tem o perdão como foco principal. Veja quais são essas cenas: o rapaz que se veste de mulher é perdoado pelo pai que o condenava em vida; os parentes pedem perdão para a viúva que trabalhou até o fim porque queria continuar mantendo sua tradicional casa de banhos; o viúvo pede perdão aos profissionais que encomendam o corpo da esposa para os funerais porque tinha reclamado do atraso deles, mas acabou vendo a excelência do ofício; o rapaz que pede perdão à família da namorada, morta no acidente de moto em que ele estava pilotando. E qual é o foco principal, o caso que segura a narrativa?
É exatamente uma história de perdão. O tocador de violoncelo que não perdoa o pai por tê-lo abandonado aos seis anos, acaba tendo de encomendar o corpo do velho quando ele morre esquecido numa vila de pescadores. A raiva acumulada por toda a vida é lavada pelo choro na magnífica cena final, quando temos um momento antológico da Sétima Arte. Nesse desenlace, vemos que, apesar da orfandade, da indiferença, dos erros, do ódio, tudo acaba confluindo para a manutenção de uma linhagem: a mensagem repassada de pai para filho, por meio de uma pedra que representa a realidade emocional do emissor. Esse é o sustento de um povo que, mesmo ameaçado pelas transformações da modernidade, mantém-se coeso nos seus costumes e tradição.
Assim chegamos à resposta da primeira pergunta: o perdão em A Partida serve para que as pessoas do Japão continuem com seu sentimento de pertença a uma cultura, que gira em torno da família, da memória e do sangue. Vemos isso por meio do ritual de encomenda dos corpos, um serviço especializado a cargo de uma pequena empresa, que trabalha para as funerárias. O fundador da agência é também um viúvo que começou no ramo exatamente quando a esposa morreu. Ele é o mestre que treina o aprendiz num ofício mal visto socialmente, mas que acaba se impondo na comunidade, pois preserva a dignidade de quem foi derrotado pela morte.
A cerimônia da encomenda dos corpos é uma maneira de devolver a pessoa falecida ao convívio dos seus familiares, dos quais estava apartada em vida. As brigas que dividiam as casas enfim desaparecem quando a limpeza, a maquiagem e o trato delicado revelam a verdadeira identidade da pessoa morta, a imagem projetada, a partir do enterro, na memória justificada pelo amor. É o amor, tornado explícito no momento terminal, entre pais e filhos, avós e netas, marido e mulher, que mantém indissolúvel o laço familiar.
É muita coisa para um filme só, nesta pequena jóia do cinema contemporâneo. A Partida merece ser assistido pelo que ele nos traz de grandeza quando nossa precariedade e escassez encontram enfim seu verdadeiro destino, que é essa passagem obrigatória para o Outro Lado.
RETORNO – Imagem desta edição: Masahiro Motoki, o aprendiz, e Tsutomu Yamazaki, o mestre, numa cena de "A Partida".
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