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13 de outubro de 2009

ENCOSTO


O espírito é um imã que atrai todo tipo de tralha. No ginásio, um colega sentava o meu lado para copiar tudo o que eu escrevia. Um dia, chegou ao auge de colocar na sua prova o meu nome. Fez isso automaticamente, não por má fé. Na vida literária, passei por todo tipo de encosto. Logo que lancei meu primeiro livro, um poeta emergente disse que, ao ler alguns versos, lhe deu vontade de me dar um tiro no olho (para me equiparar a Camões). Outro escritor, consagrado, publicou um livro inteiro no rastro de um personagem poético que criei. Não era citação, nem homenagem: era apropriação mesmo.

Quando, depois de vinte anos, alguém decidiu lançar um livro meu, fui abordado por outro escritor, conhecido, que me dizia estar também, que-nem-que, fazendo um lançamento na mesma editora. Ao participar de um evento coletivo, na hora em que fui chamado para falar, o mesmo autor se aprumou todo para tomar a palavra. Três anos mais tarde, repeti a dose e ele também. Lá estava o mesmo cara com outro livro, lançando junto, que-nem-que.

Encosto às vezes passa de pai para filho. O que era obsessão numa geração, vira doença na seguinte. Daqui a pouco, estarei lidando com os netos da mesma linhagem. Todos sendo o que precisam ser urgentemente, sem que eu possa fazer qualquer movimento. Quando assumi numa grande editora o estratégico papel de ajudar a decidir o que seria ou não publicado, choveram e-mails e telefonemas de algumas pessoas que não perdoaram a possibilidade de eu reemergir na vida literária. Parece mania de perseguição, mas “é a vida”, como dizem. O que me invoca é o resultado: o espaço que eu dispunha acaba sempre gorando.

Eu atraio e não sei me defender. Acabo sempre me enredando, porque o encosto diz que admira, mas no fundo tem aquilo que os maus chamam de “inveja boa”. Como se existisse esse tipo de coisa.

Nas redações, “chegar junto” era um tormento: sempre tinha alguém aspirando ao mesmo cargo, querendo fazer as mesmas matérias. “Papaste meu frila” era a acusação mais comum, pois eu acabava cobrindo, sem saber das intenções alheias, o que o jornalista autônomo sonhava em fazer. Mal-entendidos me perseguiram por toda a vida.

A toda hora sou convidado para participar de jogos com bolas quadradas. Queriam que eu fizesse parte do júri de um concurso literário e depois fui desconvidado, porque alguém reivindicou minha vaga. O pior é que era trabalho gratuito. Querem que eu participe de projetos estranhos, como dar três pulos em direção ao Alto Xingu e me atirar do Itaimbezinho sem para-quedas recitando os versos de notório poeta Quem?, que, como todos sabem, tem uma importância transcendental para a poesia brasileira e por isso eu devo pagar o mico, já que sou uma espécie de extra-terrestre da literatura, notório sem ser famoso e veterano ainda em busca de oportunidades.

Um dia fui a uma sessão kardecista de limpeza de aura e a pessoa que me atendeu ficou impactada. Disse que eu era um médium com grande força e precisava me cuidar, pois atraía toda espécie de encosto. Nunca dei muita bola. Mas fui resistindo, recuando, até chegar aqui no Diário da Fonte, onde de vez em quando alguém tenta provar que sou esse troço falso que todos conhecem. Isso que inventei esse espaço exatamente para ninguém vir me incomodar. Se quiser comentar, debater, maravilha. Mas se quiser se fazer de engraçadinho, me peitar, encher o saco, aparelhar os comentários, já sabe: queimei os navios.

Encosto, fora. Pelo menos nesse aspecto preciso ser livre.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de Paths of Glory, de Stanley Kubrick. Os soldados encolhidos na guerra, sob o peso de todos os encostos.

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