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13 de agosto de 2009

O SANTO GRAAL DA LIDERANÇA


Nei Duclós

O gramado ficou coalhado de corpos. Cabeças se bateram, troncos levaram empurrões, membros correram risco de fraturas. Mas não foi um embate como, horas antes, a briga entre Brasil e Estônia, que provou não existir, no futebol, o conceito de amistoso. Enquanto na Europa nossa seleção teve de manobrar com as patadas de um timeco pretensioso, no Mineirão, nesta quarta-feira, Palmeiras e Atlético lutavam por algo maior. O jogo foi embolado, mas heróico. Houve agressões, mas houve grandeza. Estavam todos determinados e saíram do estádio cobertos de suor e com a certeza do dever cumprido. As duas equipes disputavam a penúltima batalha do primeiro turno e o jogo deve ser lido à luz da literatura medieval, aquela que empolgava a multidão apaixonada pela aventura.

Para isso, vamos entender Marcos, o goleirão do Palmeiras. Ele tomou um frango logo no início, dizem todos, mas se recuperou ao defender um penalty. O futebol não é crime e castigo, culpa e redenção. É um jogo exercido por espíritos livres, que buscam a perfeição. Num campeonato de pontos corridos, como é o Brasileirão, ocupar a liderança é o Santo Graal da saga, a conquista de um status que vai levar o time à glória, o gesto de levantar a taça vestindo a camisa do inimigo derrotado. Na cidadela do arqueiro, trava-se o duelo decisivo dessa busca incessante do cálice sagrado. É ali que a coruja pia e onde Marcos, campeão do mundo, exerce sua grande arte.

O chute que causou tumulto e levou o herói para as labaredas da perdição por um longo tempo do jogo (porque todos enxergam a mesma coisa, quando o futebol sempre sugere outra) cruzou o espaço sem efeitos, firulas, curvas ou desvios de rota. Foi direto, em diagonal, em direção à ruína do Palmeiras, que antes do jogo era líder e permaneceu assim depois do 1 a 1. Poderia ser diferente. Se perdesse, teria descido um degrau na tabela, deixando escapar o objetivo do grande clássico. E poderia ter perdido, se Marcos sucumbisse à falha que cometeu. Sim, ele disse que falhou e isso de fato aconteceu. Mas é preciso mergulhar na jogada para ver alguma coisa real dela. Senão ficaremos todos a comentar futebol como se fôssemos uns tontos.

A verdade é que não foi um frango. Li num livro de Mario Filho, irmão de Nelson Rodrigues, nome de batismo do estádio do Maracanã e inventor do jornalismo esportivo, O negro no futebol brasileiro, que cercar o frango era a expressão usada no início do século passado para definir o atrapalho do goleiro que tenta evitar o gol de maneira tosca. A bola é o frango em fuga e o goleiro, tropeçando nas pernas, procura alcançá-lo, mas todos os que vivem na roça ou viveram sabem o quanto é difícil alcançar o bicho. Mario Filho também detecta a origem da palavra torcedor, que significa isso mesmo, a pessoa que se retorce nas arquibancadas, sofrendo pelo seu time.

A expectativa de quem torce é sempre vencer em todos os lances e um gol desses, que passou voando por Marcos sem que ele pudesse interceptar a trajetória do biroço que estava a seu alcance, torna ainda mais claro o papel do cidadão sofredor que comparece aos jogos. Ele não se conforma e maldiz o cara que deposita nos ombros toda a responsabilidade do resultado do jogo. O problema é que Marcos não saiu que nem um bocó atrás de alguma coisa que fugia dele. Marcos está num nível mais alto. Nesta altura do campeonato da sua vida, ele procura alternativas para as suas defesas. O que fazer com um tiro que chega de chofre a passa perto demais, quando o corpo não está na posição ideal para saltar e dar um soco decisivo?

Marcos usou os dois braços juntos, como quem vai rebater o petardo do adversário no jogo de vôlei. Não poderia encaixar, não tinha posição para isso. Poderia bater com uma só mão para fora, o que era mais provável. Vamos imaginar o seguinte: se usasse os dois braços, não poderia recolocar a bola de volta aos companheiros, que assim chegariam rapidamente a um conta-ataque? Marcos confiou no seu timing. Ele calculou, num átimo de luz, num milissegundo, que poderia, torto como estava em relação ao chute, jogar-se de maneira eficiente e ainda tirar proveito da sua rebatida. Mas talvez o excesso de elementos da sua percepção tenha entupido as veias da defesa. E o gol aconteceu, miseravelmente, enquanto Marcos pulava para o abismo.

Ok, dirão os céticos, os que não lêem romances de cavalaria, foi mesmo um frango. Ele poderia ter defendido, mas apostou na sorte, na sua experiência etc. Engraçado que a mesma experiência serviu pra defender o pênalty. Marcos, o primeiro jogador brasileiro a admitir que usa a internet para estudar o comportamento dos adversários, ficou firme enquanto Renan, do Atlético, resolveu dar a paradinha antes de bater. A paradinha foi invenção do Pelé e serve para deslocar o goleiro. Você vai determinado pra chutar, o arqueiro vislumbra o canto pelo empuxe do batedor e se atira um milímetro de tempo antes. Se você der a paradinha, vê o goleiro se jogar a esmo para o canto vazio e assim você aproveita e bate no outro.

Só que Renan não soube dar a paradinha. O que ele fez foi zerar a batida. Ou seja, correu para a bola e parou, iniciou algo que não terminou. Depois de parar, teve de recomeçar tudo. Aí não tinha mais distância ideal e improvisou. Bateu a meia altura quase no canto e Marcos, que ficou, ele sim, parado olhando, soube defender. É preciso explicar os conceitos do futebol para os jogadores. A paradinha faz parte de uma única intenção. A jogada começa na corrida e termina no gol. Há o intervalo da paradinha. Não é a mesma coisa se a paradinha for o fim de uma sessão de cinema e não seu intervalo. Você assiste metade do filme, as luzes acendem e você vai para casa. No dia seguinte, vai ver a outra metade. Não funciona assim no futebol. Você termina na mesma noite o que começou.

Mas, e o jogo? Quem foram os artilheiros, quem foi substituído, em qual minuto aconteceu o sururu, como se comportou o árbitro? E Bruno, de 21 anos, goleiro estreante do Atlético? Foi ótimo. E o gol do Palmeiras, uma pintura, com bola por elevação em diagonal e a matada final de cabeça? Maravilhoso. Mas romances de cavalaria são publicados em série. Sempre haverá uma nova oportunidade para mais comentários. Nós, os escritores inspirados nas sagas medievais, queremos saber de bandeiras ao alto tremulando, choques de metais, espadas tinindo, cavalos espumando, multidões armadas para a guerra. Alguns lances são a síntese de um jogo corrido, num mata-mata impressionante, que faz do Brasileirão um grande evento, como há muito não se via. São cortes profundos na peleja de gladiadores.

Falemos de campeonato, e de apenas alguns momentos. Não de estatísticas ou de todos os 90 minutos. Esses dados estão disponíveis no noticiário. O que nos interessa é ver os caminhos encontrados pelos times que colocam a mão no cálice sagrado. Por enquanto, é o Palmeiras. Mas, por quanto tempo?

RETORNO - Imagem desta edição: Batalha de Pharsalos, na Idade Média. Autor? Cartas pra a redação.

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