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2 de julho de 2009

OSMAR TRINDADE, DA PLATÉIA DE LIVRAMENTO


Nei Duclós

Tem morrido jornalista demais e quando soube, pelo Geraldo Hasse, que o Osmar Trindade tinha ido embora ao 72 anos, vítima de câncer, resolvi esperar um pouco, ver o que diziam dele, para só depois resgatar um pouco do que sei. Vi, alarmado, que todos falam de sua brilhante carreira, como fundador do Coojornal, a cooperativa que fez História; como ganhador de prêmio Esso, como exilado pela ditadura em Moçambique, na África, mas ninguém lembrou que ele começou na Platéia de Livramento, o veterano jornal da fronteira gaúcha. Lembram que ele nasceu lá, mas não que já era jornalista do pequeno burgo antes de se destacar nacionalmente. Foi lá que conheci o Trindade, que na época tinha uns 32 anos, já que eu dispunha de apenas vinte, e hoje estou com 60.

Fiquei com esperança de que a própria Platéia inserisse esse dado na matéria, mas, pasmem, nem a própria Platéia sabe que Osmar Trindade passou a mais importante parte da sua vida adulta lá. É de lascar. Enterramos o país defunto enquanto ainda ele respira! Esquecer um dado desses seria para nossos descendentes, lá pelo ano três mil. Agora, no calor da hora, achar que o jornalista Trindade brotou em Porto Alegre diz tudo não apenas sobre nosso assassinato da memória, mas da nação toda.

Foi assim. Eu viajava para Montevidéu em 1969 ou 70, não lembro. Até Santa Maria, fui com Marco Celso Viola, depois me mandei sozinho para a fronteira. Ao chegar em Livramento, fiquei esperando o resto da macacada, uns hippies que eu tinha conhecido e que no fim ficaram lá por Santa Maria mesmo, pois fizeram o maior sucesso com seus artesanatos, músicas e comportamentos. Eu me quedei só, cabeludo, na chuva e quase sem dinheiro. Foi então que resolvi passar pela Platéia, que eu conhecia à distância e admirava que um jornal sobrevivesse na região por tanto tempo. Naquela época, Uruguaiana, minha terra, não tinha mais jornais como antes. Só depois, nos anos 80, é que essa tradição voltou à minha cidade.

Na redação, conheci o Osmar Trindade. “Era um gaúcho quieto, pelo-duro de olhos azuis”, como me disse o Geraldo Hasse por e-mail. Contei que eu fazia parte de um grupo de estudantes portoalegrenses que estava indo para Montevidéu numa viagem de reconhecimento e cultura, difundindo arte e poesia. Na nota que fez sobre a conversa, Trindade nos chamou, afetivamente, de “gente idealista”, uma “metáfora muy fina naqueles tempos bicudos”, como me disse o Hasse. É verdade. Idealismo nos livrava da condenação de sermos tachados de subversivos. Éramos pelo ideal, não pela revolta. Trindade assim nos preservava, tão expostos que estávamos, sem saber do perigo que corríamos.

Acabei voltando para Portinho, depois de amargar uma cana de um dia. Quase fui levado para o quartel. Tive sorte, pois o oficial S2 (mais tarde descobri que era o encarregado dos interrogatórios) não estava no momento. Fui expulso da cidade por motivos pífios. Talvez porque eu fosse estudante, era pleno ano letivo e meu cabelo arrastava no chão. Eu usava uns coturnos de milico (presente do meu cunhado capitão), roupa rasgada, calça imunda. Deve ter sido isso.

Anos mais tarde, Trindade aportou em Portinho e não tinha onde ficar. Recebi-o em minha república, na Coronel Bordini, Auxiliadora. Ele ficou dez dias. Na saída, me disse:
- Como é do meu feitio, nem vou te agradecer.
Custei alguns minutos para entender que nós, homens da fronteira, nos dizemos as maiores barbaridades só para que a amizade não pareça uma coisa babaca.

Depois, trabalhei com ele na Folha da Manhã. Eu era copy e ele chefe lá. Parece que a gente teve umas rusgas. Acabou tudo como sempre, num enorme passaralho, que me levou embora para São Paulo e ao Osmar, para o Coojornal e depois para a África.

Foi enterrado por cem pessoas que compareceram aos funerais. A maioria jornalista. Como disse Elmar Bones, o Bicudo, da mesma linhagem dos combatentes de Livramento, citado pelo Hasse: "O Trindade era uma bandeira desse jornalismo que se estiola nas dobras do neoliberalismo...Sua morte deve pelo menos servir para retemperar os brios dos que ainda restam..."

Osmar Trindade, jornalista brasileiro, presente. Da Platéia de Livramento para o mundo. E daqui para a memória, chama que não deve se extinguir nos nossos braços ainda no front.

RETORNO - Imagem desta edição: foto de Daniel de Andrade.

DOIS DEPOIMENTOS EM TORNO DE OSMAR TRINDADE

Paulo de Tarso Riccordi : “ No auge da Rádio Continental achei que estava na hora de fazer jornalismo "a sério" e fui bater na Folha da Manhã. Procurei pelo Bicudo e pedi emprego. Perguntou-me o que gostaria de fazer. Tudo - respondi -, menos Polícia e Esporte. Ele apontou para um índio de olhos azuis, adiente, e disse-me: amanhã te apresenta àquele cara. Dia seguinte cheguei cedo e o Trindade (era o índio) me deu a pauta: o julgamento do Camisa Preta, "um bandidaço", informou.

Descobri, então, que iria trabalhar na editoria de Polícia... onde aprendi com ele a olhar atentamente para as pessoas que fazem e sofrem os fatos. O traço new journalism da Folhinha era impulsionado por esse gaúcho de Livramento, que foi tropeiro com seu pai e irmãos, generoso e bondoso com todo mundo, com quem era impossível brigar, que sempre encontrava um lado divertido em qualquer desgraça, sempre de olho nas pessoas que as viviam, e nos incentivava a escrever sobre isso.
Que baita editor! que baita professor! que baita amigo tivemos!

Minha faculdade de jornalismo foi cursada de madrugada na Itabira, a churrascaria do sogro do Kenny Braga, onde lecionavam os meninos criados n'A Platéia de Livramento: Trindade, Bicudo, Kenny, Ucha. Dezenas e dezenas de pautam foram produzidas ali, quando se fazia jornalismo com repórteres na rua e na estrada.

Do Bicudo, o melhor que conheço, recebemos a melhor técnica que se pode esperar em jornalismo. Do Trindade, o enfoque, a humanidade, a generosidade... e a literatura. E pensar que a última vez que nos falamos foi em nossa única briga (na ronha da Coojornal e do nosso Sindicato, fins dos anos 70). E, mesmo aí, mandou um recado por minha esposa de então: "tenho que dizer uma coisas ao Tarso e ele tem que dizer uma coisas pra mim". É muita delicadeza para um guri que na época era muito brigão e grosseiro até com os amigos.”

Marlon Asseff: “Nos meses que se seguiram ao golpe, A Platéia continuou mantendo uma linha editorial de indignação com os rumos do novo governo, publicando artigos de jornalistas do centro do país, que criticavam sistematicamente a quebra da ordem constituicional. Toscano Barbosa constantemente mandava transcrever a coluna de Carlos Heitor Cony, do carioca Correio da Manhã, para publicar na primeira página do jornal. Caso achasse o texto um pouco recatado, pedia a Kenny Braga que reescrevesse partes do texto e adaptasse à linha política do jornal.

Ele mandava esquentar. Uma vez contei isso pro Cony aqui, anos depois e ele morria de rir. Uma vez o Toscano não gostou do capítulo final. Disse: "Seu Kenny, modifica isso aqui! Isso aqui não tá bem aqui, muda o parágrafo". Eu quis argumentar, mas Toscano, a coluna é do cara, e tá assinado[...]"Mas o jornal é meu!" Bom, aí me matou, e eu mudei o final da coluna. O Toscano seguidamente ia preso, para Segunda Divisão de Cavalaria, em Uruguaiana. E o motivo é que esses oficiais de fronteira estavam muitas vezes acima da lei, estavam acima da constituição. Então o cara lia uma notícia no jornal e não gostavam do que liam e mandavam apreender a edição inteira do jornal, como aconteceu uma vez em Rosário. E o Toscano ficava indignado. [...] E ele até me dizia assim: "Pau nesse crápula seu Kenny, pau nesse crápula!""

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