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11 de maio de 2009

SOMBRA E NEVE, O CLARO-ESCURO DE NICHOLAS RAY


Nei Duclós

Alguns arriscam que Casa das Sombras (On Dangerous Ground), de 1952, com Robert Ryan, Ida Lupino e Ward Bond, é a grande obra-prima de Nicholas Ray, melhor e mais importante do que seu famoso Rebel Without a Cause ("Juventude Transviada", péssimo título em português que deveria ser substituído pela tradução literal, "Rebelde Sem Causa"), de 1955. Talvez mais do que, pecado dos pecados, Johnny Guitar, de 1954. Impressionado com este filme, que descubro tardiamente, agora entendi a famosa frase de Jean-Luc Godard, “Nicholas Ray é o cinema”.

Não há mistério nem firula. Trata-se dos fundamentos do claro-escuro como obra de arte em movimento, por intermédio de uma divisão da narrativa em duas partes iguais: a sombra, ou seja, a metade da história que é integralmente filmada à noite, quando o protagonista amarga a solidão e a frustração no seu trabalho de policial, que abomina e o torna bruto com suspeitos e colegas; e a neve, a antológica caçada a um estuprador-menino em pleno inverno, em que a claridade fosca do campo deságua na casa fechada onde uma cega se revela como o espelho do sofrimento que levou o anti-herói até aquelas paragens.

Ward Bond, o ator da troupe de John Ford (que faz o xerife brutamontes de Rastros de Ódio, entre inúmeros outros papéis) é o pai enlouquecido que procura fazer justiça com seu rifle carregado. Essa postura violenta já tinha empurrado o policial da cidade (interpretado por Robert Ryan) para aquele ermo, já que foi punido com um caso fora da cidade para poder dar um tempo e deixar de bater nos suspeitos. Agora é a sua vez de colocar panos quentes nesse tipo de condenação prévia e punição ilegal. O impulso vem da mulher que habita a casa isolada, uma Ida Lupino inesquecível, a grande atriz que também foi diretora de nove filmes e que, dizem, substituiu o diretor Ray, que caiu de cama, por vários dias nas filmagens.

A sombra espessa e sem janelas é a parte sufocante e sem solução do policial solitário, que no início é apresentado em oposição aos seus colegas, todos com mulher e filhos. Ao mergulhar nessa sombra, ele gera o impasse. Seu chefe então o manda embora, para fora da cidade, para que possa pensar sobre a vida e ajude a resolver o caso do estuprador que matou uma garota do campo. Ao chegar no descampado, os rastros na neve levam à casa onde mora seu espelho, a cega de solidão que acaba confiando nele. “A diferença entre nós dois”, diz ela, “é que um policial não confia em ninguém e eu, que sou cega, precisa confiar em todos”.

Essa fé, que nasce em quem não tem mais nada a perder, é a prova que faltava para surgir o dia claro, o desfecho em que os dois se reencontram na esperança. Uma coisa recorrente nos filmes da época é que se acreditava na cura das pessoas. A psiquiatria e a medicina, segundo essa versão, tinham condições de tirar as pessoas do gueto e levá-las para uma vida plena. Havia a chance de mudança, o que não ocorre nos filmes de hoje, em que os papéis estão definidos e ninguém escapa de seus destinos de vilania e perdição.

Mas esse aspecto não importa. O que vale é a obra fundada na sua técnica, o claro- escuro como base da narrativa, como representação da vida dos personagens. A paisagem, o que é externo às pessoas é, no fundo, a identidade de cada uma delas: o policial sombrio que anda só pelas ruas e se confunde com a noite; o sitiante bruto que pisa na neve de seu coração seco e estéril; a mulher cercada pelas paredes que escolheu para viver, já que se recusara , por medo, a fazer o tratamento que salvaria sua visão.

Um dos grandes destaques de On Dangerous Ground é a perseguição de carro numa estrada precária tomada pela neve, em que a câmara segue o caminho do acidente, transformando a cena na visão terminal da câmara que tomba e é abandonada por quem a manipulava. Grande Nicholas Ray, o sujeito que deixa uma herança que pode ser usufruída hoje intacta, com a limpeza do trabalho bem realizado e a grandeza do destino cumprido até o último segundo de seus filmes antológicos.

RETORNO - 1. Imagem desta edição: o perseguidor é a sombra na neve perigosa. 2. No Brasil, "On dangerous ground" ganhou o título de "Cinzas que queimam", como avisa o leitor e admirador desta obra-prima, André de Godoy. Preferi traduzir o título adotado pelos países de língua espanhola. Considero "Casa das sombras" muito mais apropriado.

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