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27 de maio de 2009
A NÓS, A LIBERDADE
Nei Duclós
Tenho visto vários filmes de prisão, como Força Bruta, do grande Jules Dassin, um cineasta que ainda não destaquei devidamente aqui e é autor de algumas obras-primas, como The Night and the City, uma Londres americana filmada sob influência do neo-realismo, e, pelo menos, a sequência final de seu clássico Rififi, feito na França, quando se exilou do macartismo (sempre ele, o lacerdismo original do primeiro mundo).
Como Rififi é muito antigo, de 1952, posso contar essa seqüência: o ladrão, aqui protagonista e herói, ferido de morte, leva no seu carro o menino que tinha sido seqüestrado. Paris jamais foi filmada com tanto desespero, de baixo para cima, com os edifícios e monumentos famosos rodopiando conforme o carro é dirigido nas curvas das ruas. O garoto, libertado da mão da quadrilha, está vestido de cow-boy. Ri e brinca apontando seu revólver de brinquedo enquanto seu salvador agoniza. É de matar. É cinema para empolgar quem vê em qualquer época. É arte-paradigma, que põe no chinelo as últimas décadas de bobagens comerciais.
Os filmes dos anos 30 a 50 focam a prisão como um lugar de vítimas do sistema que tudo fazem para escapar. Torcemos pelos condenados e lamentamos quando são pegos. Era um tempo de crítica ao capitalismo, não como agora, em que o capitalismo faz parte da natureza humana. Hoje, as prisões do cinema são nichos de fortudos que se amam e acabam de engalfinhando em pátios sujos de lama, como vi inúmeras vezes. Não há mais justificativas para quem está na cela, a não ser pelo fato de haver o herói que vai se vingar (e normalmente consegue) dos bandidos no poder. Carandiru é uma contribuição interessante, pois flagra o colapso do sistema, a brutalidade cega e suicida da repressão e a culpa abraçada à doença, num reflexo poderoso do Brasil em ruínas.
Ninguém poderá ver nos prisioneiros do Carandiru um herói, como aconteceu com O Homem de Alcatraz ou mesmo os dois protagonistas do impressionante A nous la liberté, de René Clair, que faz, de dois condenados, modelos da luta pela libertação. Naquela época, o foco eram os princípios. A prisão era o retrato do sistema. A obra de René Clair, de 1931, foi claramente plagiada por Chaplin em Tempos Modernos, de 1936. Houve um processo da produtora do filme de Clair que se arrastou por dez anos. Chaplin cedeu, a mando dos seus advogados, mas jamais admitiu o plágio, notório e explícito. Clair não quis entrar no rolo, disse que era uma homenagem e acabou amigo de Chaplin.
As imagens de A nous la liberté não mentem: não há diferença entre a fábrica e a prisão. A história é uma utopia fundada na esperança da ciência como instrumento de redenção. Um dia, diz essa lenda, as máquinas farão tudo e seremos livres para sempre. A sequência final (feita há 80 anos, posso contar), em que as esteiras desovam produtos enquanto os operários bebem vinho e jogam cartas e a população faz pic-nic no parque ou dança ao ar livre, é a corporificação dessa utopia. Os dois ex-condenados reencontram a liberdade pegando a estrada como dois vagabundos, numa premonição dos anos 60 (forçando um pouco o anacronismo).
Há também, antes do fim, a sequência do vendaval que joga o dinheiro para o ar e surra o velho que faz um discurso obsoleto. Capitalistas e operários lutam pela grana, sem ver o que o filme mostra: o final dos tempos e o início de uma era de libertação. René Clair inclusive coloca todo um aparato que lembra muito a rede de computadores. Tudo é feito pelo modo analógico, claro, mas a cena em que o patrão consegue a foto e o perfil de dois funcionários em poucos segundos é uma previsão com grande margem de acerto.
Visto hoje, quando a robótica avança na indústria, a informática libera as pessoas de ficarem em seus ambientes profissionais, podendo trabalhar em casa, sabemos que falta algo à utopia de Clair: a de que a exclusão continua e aumenta, e a tecnologia muitas vezes é usada para gerar mais miséria, como acontece com a especulação financeira on-line.
Considero contemporâneos todos os filmes feitos nestes mais de cem anos de história do cinema. Não existe filme antigo. É tudo hoje. Duvido que consigam mais impacto visual do que em Aurora, de Murnau. Duvido que reflitam melhor a desumanização no trabalho do que A nous la liberté. Duvido que haja tragédia maior do que Burt Lancaster em Força Bruta: depois de peitar meio mundo na prisão, e jogar o algoz de cima da torre de comando, ele não consegue abrir o portão que estava trancado por um caminhão jogado ali exatamente para romper aquela barreira.
Temos de ter acesso o tempo todo aos milhões de filmes de mais de um século de Sétima Arte. Todos eles são de hoje. Precisamos do cinema para libertar nossa percepção. Para nós, escravos, a liberdade.
RETORNO - 1.Imagem desta edição: cena de "A nous la liberté", em que operários podem jogar carta em pleno expediente.
BATE O BUMBO: ANIVERSÁRIO DE URUGUAIANA
Repassei para o assessor de imprensa da prefeitura da minha cidade, o incansável e operoso Rubens Calliava Montardo Junior, este e-mail enviado ontem, dia 26 de maio, por Clovis Heberle: "Nei, hoje, aniversário de Uruguaiana, o Jornal do Almoço foi transmitido de uma praça da cidade. Deu gosto de ver a alegria do povo e as imagens de uma cidade limpa, bonita e orgulhosa. Também me chamaram a atenção o restaurante popular para 600 pessoas e uma particularidade meteorológica: é a cidade brasileira com maior amplitude térmica (o contraste entre o frio do inverno e o calor do verão). Um abraço. Clovis. PS - parece que o Sanchotene Felice está se consagrando como um dos melhores prefeitos que Uruguaiana já teve".
Parabéns, cidade eterna e muito lembrada e querida. Nós somos tu, onde formos, onde estivermos.
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