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18 de maio de 2009

KUROSAWA E O ASSOBIO DO VINGADOR


Nei Duclós

Em 1960 Akira Kurosawa enfim conseguiu fazer um filme independente, onde era responsável pela produção e a direção, sem interferência de ninguém. O resultado é The Bad Sleep Well (que eu traduzo para O Sono Tranqüilo da Maldade), uma obra didática sobre o funcionamento da corrupção num caso clássico: a relação incestuosa e criminosa entre um departamento estatal e uma grande construtora - ou seja, uma história que é puro Brasil.

Uma das revelações mais assombrosas, notada por Ida Duclós, que viu comigo o filme, é que cai por terra a velha teoria do suicídio como saída honrosa para os executivos japoneses pilhados com a mão na massa. Simplesmente é a máfia que “suicida”, como nos ensina o Grande Mestre, pois faz o que quer por não haver oposição – não acham coincidência demais com o caso brasileiro? O único que se insurge é o filho bastardo de um desses falsos suicidas, que cria uma trama para vingar o pai assassinado.

Trata-se de um personagem hamletiano – como notou a crítica internacional, o que é verdade em parte, pois se há elementos de Shakespeare não há uma sintonia total com a peça famosa. Uma das criações cinematográficas mais significativas deste filme é o jingle assobiado pelo vingador, uma cortina musical curta que ele executa sempre que consegue uma ação vitoriosa. Lembra Harmônica, interpretado por Charles Bronson em Era uma vez o oeste, de Sergio Leone, que toca uma melodia determinada na sua gaita de boca para anunciar que veio para matar os criminosos.

O assobio curto que chama o cavalo do mocinho – era no Zorro, Roy Rogers, Gene Autry ou em todos eles? –; a música do casal que sela o amor eterno e que é recuperada toda vez em que há enfim o reencontro; o toque de clarim da cavalaria que chega para resolver a parada; a cortina musical que veste a cara de espanto de criaturas que alcançam a catatonia do ver, quando a verdade revelada faz surtar os protagonistas; tudo isso são personagens musicais que nos encantam na Sétima Arte. Aqui, no caso deste filme importante (não canso de dizer: não existe Kurosawa menor) o herói assobia para mostrar que está feliz em dar mais um passo rumo à vingança. Será bem sucedido no final?

Em vez de filmar o ataque ao homem que estava entregando toda a sujeira para a imprensa e a nação, no lugar de uma briga, com socos, pontapés, mordidas, tiros, Kurosawa usa outro estratagema. O casal ruma para o esconderijo para salvar o vingador e ao longo do caminho passa por uma barreira policial que toma conta de um carro acidentado. Os dois chegam enfim ao local e lá encontram o parceiro do protagonista desesperado, que conta como o amigo foi subjugado, seqüestrado e colocado dentro do automóvel que enfim se chocou com o trem. Era o mesmo que estava todo amassado na estrada.

É uma extrema sofisticação narrativa, que deixa de lado as soluções fáceis, elimina a tentação de apelar para a mediocriade comercial do ver, compondo uma narrativa romanesca onde vale a imaginação do espectador. Nós, na platéia, ficamos construindo as imagens virtuais que não aparecem no filme, do grande sufoco passado pelo rebelde e sofrendo com seu acidente do qual só aparecem os ferros retorcidos. É impressionante. Na cena final, o poderoso chefão recebe o telefonema de um mafioso mais poderoso do que ele, dá explicações, pede desculpas e se curva diante do telefone. Mortal.

“Será que tem de ser sempre assim?” pergunta, desesperado o amigo que descobriu tudo, mas não tinha prova de nada. A máfia é profissional, sabe como se defender e tira do caminho quem quer que se interponha contra ela. São imbatíveis. Por isso até hoje estão no poder. Fatalmente é por isso que mais este grande filme de Kurosawa permanece na sombra. No lugar dele, você “vai se emocionar” com o ex-jogador de beiseball que está no ermo cheio de ódio e recebe e visita do velho treinador que vai resgatá-lo para a glória final em câmara lenta e risinhos cretinos. Quando não acaba tudo numa grande explosão, que no fundo significa a retenção dos programadores de TV, que adoram machões explodindo tudo para se livrarem da mocinha e ficarem juntos para sempre.

RETORNO - Imagem desta edição: Toshiro Mifune nas ruínas de uma sociedade perversa.

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