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29 de abril de 2009

ILUMINAÇÕES DE “O LEITOR”


Nei Duclós

A massa crítica dos espectadores – vê-se pelos comentários nos blogs dos especialistas e pela proliferação de textos e autores sobre os filmes – cobre de desconfiança lançamentos premiados da indústria. É uma sinuca de bico: o Oscar é justo ou apenas faz parte do lobby? Os truques do cineasta funcionam e devem ser celebrados ou tudo não passa de armação de ilusionistas milionários? A carga brutal de obras que são despejadas no mercado funciona como uma armadilha da percepção. Gostar de um filme famoso significa render-se aos planejamentos dos executivos do ramo? Ou seria mais prudente invocar o cult para desmoralizar o megasucesso?

Como não sou crítico e sim um cronista de cinema – que às vezes consegue interferir com alguns aspectos do ensaio, ou seja, contribuindo com idéias originais sobre o tema – e publico numa mídia pessoal, este Diário da Fonte, já no oitavo ano de existência, não sofro as pressões de prazos nem de leituras. Fico assim mais à vontade para escrever sobre tudo sem me envolver nesse jogo. Pelo menos, assim imagino.

Quem comenta em espaços jornalísticos da Sétima Arte é também cinéfilo e possui, como muitas vezes acontece, alguns cacoetes dos críticos. Quais são eles? Tratar com um certo ar blasé todo filme muito bem embalado, bater em alguns consensos (como a performance de uma atriz ou uma produção caprichada) e despejar maldades usando comparações com outros que, são, em tese, muito mais importantes e melhor realizados.

O Leitor, terceiro longa de Stephen Daldry , que nos deu o magnífico As horas (que gerou o insight do título do meu futuro livro “Todo filme é sobre cinema”) encara esse cerco. Kate Winslet, vencedora do Oscar deste ano como melhor atriz, é elogiada, mas não a maquiagem que a envelheceu 40 anos e que considero perfeita. O tema do Holocausto e a lavagem de roupa suja depois da II Guerra é considerado “pano de fundo”. Implico com esse conceito, pois não há pano em cinema, muito menos de fundo. O que está aparentemente “no fundo” de uma trama é a sua essência, é sobre isso que trata a obra.

História, neste trabalho iluminado como se fosse um quadro da Renascença, é compromisso coletivo e culpa. O perdão, que é a proposta do filme, é um outsider do evento histórico, foi marginalizado pelos tribunais, os sobreviventes e os realmente culpados. A tragédia agora, depois da carnificina, é que não há remorso, mas sim o milésimo estágio da vingança. Quando uma sociedade procura se vingar não só dos estadistas que inventaram o horror, mas dos seus mais humildes subalternos, é preciso continuar procurando o bode expiatório, a pessoa indicada pelas evidências da lei, que vai carregar o peso do mundo. Essa é a chance de o resto (que compartilha da responsabilidade) poder se safar, ou pelo menos sair com menos arranhões.

A condenação da protagonista livra os outros da mancha. Mas, diante da lei, ela seria inocente, pois não assume um segredo e isso é sua perdição. Acaba arrostando todo o pecado, primeiro porque foi sincera e disse a verdade (não cometeu o crime sozinha) e segundo porque não contou seu segredo, que poderia salvá-la (ela não liderou o massacre). O ex-amante, que a conheceu oito anos antes, interpretado na juventude por David Kross e na maturidade por Ralph Fiennes, não interfere no julgamento, quando seu testemunho poderia salvá-la, pelo menos da acusação mais grave (a de responsabilizar-se pela mortandade numa aldeia).

A culpa assim migra da personagem para a coletividade e para quem a amava sem saber. Isso dá grande complexidade a um tema super-explorado e ilumina as decisões pessoais com a gravidade real dos eventos e não com seus escapes, suas argumentações falsas, suas fantasias. A vida não brinca com ninguém, muito menos com quem se considera imune a qualquer crime, já que pertenceria à porção virtuosa de humanidade. Não existem virtudes, mas leis. Não existe fuga, mas comprometimento, voluntário ou não.

E não há espaço para o amor, mas para a Justiça. Tanto a relação amorosa quanto o julgamento no tribunal fazem parte da escassez humana que acaba se impondo décadas afora. São engolidos pela secura do coração e a incapacidade de se olhar para a frente e reinventar o futuro. O amor antes do julgamento seria a chance perdida de uma sociedade que já tinha pago seus pecados.

Cinema é a arte suprema sobre seu próprio objeto. Que não são as pessoas, os sentimentos, as leis, as guerras ou as memórias. E sim, o cinema mesmo, iluminado pela competência técnica e a grandeza da cultura. “O Leitor” se presta a revelações importantes sobre como os envolvemos com pessoas e acabamos nos livrando delas. Para isso, usa a linguagem que lhe é própria, e que Godard, no tempo do celulóide, chamava de “a verdade a 24 quadros por segundo”.

RETORNO - Imagem desta edição: Kate Winslet e David Kross na descoberta do amor livre das amarras da História e da Justiça.

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