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28 de abril de 2009
CHE, PARTE II: A LUTA DEPOIS DA MORTE
Nei Duclós
“Para vencer nessa selva, é preciso lutar como se já estivesse morto”, diz Ernesto Guevara para o companheiro que sonha em deixar a guerrilha. Ou seja, é preciso entregar-se não porque exista o sentimento de perdição e derrota, mas porque a esperança de manter a vida que se pretende soterrar atrapalha o foco da ação revolucionária. Se você quer mudar o mundo, precisa mudar sua vida, morrer para o que está acostumado e se reinventar. Sonhar com o impossível: viver no futuro com uma outra persona, construída ao longo da batalha.
Livre das amarras, o soldado da ideologia se transforma no demiurgo de sua própria saga, no mágico capaz de reinventar o mundo. Foi assim com o médico argentino Ernesto Guevara, que na luta virou o herói cubano Che. Mas ele não tinha fôlego para o empreendimento que tomou conta da sua vida, o de libertar a América Latina da servidão. A asma, que é o esforço de respirar, intensifica a percepção e escancara as portas do sonho: para contrabalançar o delírio de interromper 500 anos de história colonial, Guevara lançou mão da lógica do materialismo dialético, a filosofia pragmática em luta contra as armadilhas da ilusão.
“Vim para cá e daqui só saio morto”, dizia, advertindo pelo exemplo os que queriam se engajar sem pensar nas conseqüências. “Só existem duas opções: a vitória ou a morte”. Não era, portanto, uma aventura. Obedecia à evidência de que a luta armada estaria a serviço da população oprimida. Como acontecera em Cuba em 1958/59, com uma diferença: na Bolívia, onde se deu o desfecho trágico do herói andante, não houve a mesma costura política, nem as armas expressavam o momento maduro da ação revolucionária.
Para Che, não importava. Quando o representante do partido comunista lhe avisou que não existiam condições objetivas para a luta armada, Guevara replicou com estatísticas: a maioria dos mineiros não chegava à idade dos 30 anos, por exemplo. A miséria e a brutalidade eram as condições objetivas que lhe bastavam. Outro argumento ele brandiu para Fidel Castro: “Se esperarmos, só iremos agir daqui a 50 anos”. Instrumentado por essa lógica, o guerreiro partiu para o isolamento, sendo caçado até ser preso e depois fuzilado com três tiros, antes de ser exibido ao mundo como um troféu.
A selva não tem nada a dizer: a câmara de Sordenberg percorre o vazio da paisagem até encontrar algum sentido nela, a luta. As batalhas deste filme admirável são opostas à facilidade sanguinolenta do espetáculo americano da morte virtual, nos blockbusters mortíferos. A paisagem só faz sentido quando há presença humana: os guerrilheiros em contato com os desconfiados camponeses, as tropas do exército fechando o cerco, os tiros arrancando pedaços de quem tenta se esconder em árvores ou pedras. As tropas bolivianas treinadas pelos americanos, que trouxeram sua experiência do Vietnã, são essa varredura de extrema intervenção no território disputado. Enquanto os guerrilheiros se confundem com a natureza, os soldados do governo se destacam com suas ferramentas e em massa assombram o horizonte no anoitecer.
Dividir a saga de Che em duas partes, uma sobre a revolução cubana vitoriosa e a outra sobre a guerrilha derrotada na Bolívia, significa que o diretor Steven Sordenberg conseguiu fazer um épico clássico sobre um personagem histórico, mas a indústria não comporta mais longas como tínhamos antigamente, quando entre as duas partes havia um intervalo de dez minutos. Preferiram lançar dois filmes, mas é um só. Um filme sobre cinema de guerra. Com tiros esporádicos, diálogos incisivos, ação o tempo todo sem apelações inúteis, Che, de Sordenberg, é uma narrativa didática sobre uma idéia, a revolução, e de como seus soldados enfrentaram o front sabendo que estavam mortos para a vida que já estava decidida antes de nascerem.
Che, interpretado por Benicio Del Toro, é obra antológica e permanecerá, não por mitificar o heroísmo, mas porque é um trabalho que honra a Sétima Arte. Longa vida ao talento. E à coragem de entregar-se à missão de não permitir sua derrota.
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