Páginas

4 de março de 2009

O REPÓRTER QUE PAROU O AVIÃO


Nei Duclós (*)
Jorge Edemar Ruwer corre para o meio da pequena pista da cidade do interior do Rio Grande do Sul e faz sinal, de maneira decidida, sacudindo os braços, para o pequeno avião que iria partir para Porto Alegre. Ele sabia que aquela era a única chance de colocar a matéria na edição do dia seguinte. Naquele tempo, final dos anos 60, o telex era considerado ainda “a maquininha mágica”, como nos diziam no curso de Jornalismo. Enviar texto e fotos, do lendário fotógrafo J. B. Scalco, seu companheiro daquela jornada perigosa, antes que a máfia se mexesse e impedisse a publicação, era uma questão de vida ou morte para o grande repórter.
Ele usava um chapéu imenso, uma calça surrada da marca Far-west (as pré-jeans), botas sanfonadas de gaúcho campeiro, camisa de algodão e casaco de brim, que nunca tirava. Tinha o olhar que varria horizontes, o queixo sempre levantado, tentando enxergar além do que era visto. Descobriu uma rede de bandidos que exploravam a prostituição e o tráfico de crianças pelo interior gaúcho e publicou uma série de reportagens a pedido do secretário de redação da Folha da Tarde, Walter Galvani, na época à frente de uma equipe jamais igualada. Além de Ruwer (que com esse trabalho ganhou o prêmio Ari - Associação Riograndense de Imprensa, de 1970) havia Valdir Zwestch, Jorge Escosteguy, Danilo Ucha, Ademar Vargas de Freitas, Luiz Henrique Fruet, entre muitos outros.

O avião teve que parar diante da insistência do repórter. Ruwer então colocou nas mãos do piloto um envelope lacrado, com os textos e as fotos da denúncia e impôs sua vontade, com seu jeito largo, firme e ao mesmo tempo cavalheiro, com a força da sedução de um temperamento vocacionado para o perigo da informação inadiável. Era preciso que o material fosse entregue para o motorista da Caldas Junior logo que o avião pousasse no aeroporto Salgado Filho. De lá, partiria queimando pneu até a redação, onde seria editado, as fotos reveladas e ampliadas e tudo colocado direto na oficina a chumbo.

No dia seguinte, os leitores tinham na mão a bomba do repórter inesquecível que, por “coincidência”, foi assassinado mais tarde, em Passo Fundo, sendo que o seu assassino levou também um tiro na nuca. Assim se eliminaram os grandes repórteres da imprensa brasileira, e foi bem na minha vez, quando eu estava entrando na profissão. Tive tempo de ver, de relance, aqueles que deixaram sua marca e hoje estão esquecidos. Ruwer é nome de rua em Carazinho, mas é muito pouco. Seus textos deveriam estar reunidos em livros. Haveria muito mais proveito do que qualquer manual de redação.

Ruwer é um dos craques do time de repórteres que fez a história do jornalismo brasileiro. Nessa seleção de ouro, entram, obrigatoriamente, Hamilton Almeida Filho, Marcos Faerman, Octavio Ribeiro (o Pena Branca) e tantos outros, mais conhecidos. Na redação que eu tivesse o privilégio de montar, os retratos deles estariam nas paredes, a exemplo das galerias de estadistas nas sedes das grandes repúblicas. Haveria uma biblioteca (nunca conheci redação com biblioteca) com todos os livros reunindo suas reportagens e os autores que fizeram suas cabeças. Depois, convocaria alguns talentos espalhados pelo Brasil e que, super-capacitados, ainda estão por mostrar tudo o que podem fazer (mesmo os mais notórios).

Convidaria para visitar a redação, periodicamente, alguns veteranos. Na porta, colocaria um quadro do Edemar Ruwer, usando chapéu de aba larga e botas sanfonadas de cano curto, com olhos rútilos de tesão pela profissão que abraçou e por ela dedicou sua vida, fazendo sinal para o avião parar.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada na minha coluna semanal do espaço Literário, do Comunique-se, de todas as quartas-feiras. 2. Imagem desta edição: Edemar Ruwer, foto raríssima cedida gentilmente pelo seu irmão, Renato Ruwer.

REPERCUSSÃO DESTE ARTIGO NO COMUNIQUE-SE

Ana Paula de Lourdes Palhares [05/03/2009 - 11:18]
(Estudante)

Que artigo lindo! Jorge Edemar Ruwer o homem que parou o avião. Há uma metáfora nessa frase, algo para ser refletido na conduta jornalística, no processo atual quantos aviões serão parados para a prática do bem?

Paulo Ludmer [05/03/2009 - 10:08]

Nei, pegou na veia. O Faerman, amigo aqui em São Paulo, cuja filha cineasta recém realizou video com o meu Luis(agora em Vancouver), acompanhei desde sua chegada ao Jornal da Tarde, anos 70, até o triste fim. O Escoteguy, outra grande perda. Afinal, o RGS tem sido para o jornalismo brasileiro aquilo que a Argentina foi no século XX para a literatura. A lista de seus brilhantes não cabe aqui de tão grande e importante. Porém, suas menções selecionam um time de Copa do Mundo das velhas Remington e Olivetti. Que homenagem!

Fabio de Lima [05/03/2009 - 05:45]
(Repórter-Supervarejo - SP)

Falando de grandes jornalistas e vendo o nome do Marcos Faerman no seu texto...! Bem, eu vi o Marcos Faerman apenas uma vez na minha vida, mas tenho um história interessante pra contar. Não gosto muito de escrever sobre jornalismo - frescuras da minha parte - mas terça-feira talvez eu conte. Um abraço, Duclós!

Mara Narciso [04/03/2009 - 18:16]
(Profissional Contratado)

A fama de que não temos memória é desmentida nesse relato. Quem tem mérito deve receber as comendas. Elogiar esforços, inteligência e talento é um estímulo aos que chegam. Quem conseguiu fazer o que fez em condições tão precárias, o que não faria com os confortos de hoje?

Daniel D'Assumpção Dos Santos [04/03/2009 - 15:49]
(Freelancer)

... olhos rútilos de tesão ... Às vezes, a frase perfeita, perfeitamente colocada, vale pelo texto todo. Aqui, no entanto, tudo é bom, do título ao ponto final. Cada palavra, já amornada e amorenada pelo tempo, pela memória amorosa, nos chega com a elegância de uma justa reverência. Quem sai aos seus não degenera, caro Nei, e vc é igualzinho aos demais: admiração é identidade, é reconhecer-se no espelho sem consciência disso. Parabéns.

Nenhum comentário:

Postar um comentário