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10 de março de 2009

DITADO


Nei Duclós (*)

Dia de ditado era uma tortura. A professora escandia as sílabas pronunciando um texto e nós tínhamos que colocar no papel o que ouvíamos, sem cometer erros. Por muito tempo me perguntei para que serviria um exercício aparentemente tão sem sentido. Hoje, quando vejo monólogos concomitantes em grupos autosuficientes, descubro tardiamente os benefícios desse treinamento ostensivo. Primeiro, tínhamos que entender o que era dito. Segundo, acostumávamos o ritmo do ouvido ao ritmo do narrador. Terceiro, podíamos transformar cultura oral em escrita (e checar sua correção comparando com o texto original, impresso, lido em aula).

Mas o bom e velho ditado não pode servir de álibi para justificar toda a tralha fundamentalista da educação baseada na pressão desumana sobre os estudantes. E sim lembrar o quanto era importante a presença de um professor esclarecido, num ambiente, por princípio, disciplinador. Um medíocre aproveitaria o clima de pressão para humilhar os estudantes e tentar encobrir a própria ignorância. Mas uma alma com luzes faria do silêncio obrigatório uma viagem para o cultivo da introspecção, e não um clima de paz no cemitério. Faria do respeito mútuo imposto pela disciplina uma porta para a gentileza e o interesse pelo Outro e não uma forma de se anular em público.

No momento em que foram destruídas as bases do sistema, como a alfabetização por meios árduos, o ensino de línguas e de música, e a memorização, de fundamental importância, colocada na vala comum da decoreba, foram também para o ralo as chances de um ensino formador de consciências em regime de liberdade. Quando se transforma a sobriedade em aula em jogos lúdicos de desrepressão inconseqüente, instaura-se a educação modelada pela superficialidade.

Os estudantes, assim como os professores, tem fome de transcendência. Sem ela, somos animaizinhos de estimação participando da máquina de formar consumidores submissos. No lugar de cidadãos capazes de ditar os rumos do país em ruínas, estamos formando espécimes que abraçarão atividades datadas. Para isso, existe tanta faculdade especializada em ofícios que não passam de sepulcros caiados, enquanto profissões fundamentais perdem o contato com a erudição, que só pode ser conseguida com esforço e maturidade.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada hoje no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: mais uma obra do gênio Norman Rockwell, que mostra uma professora, certamente escandindo as sílabas (escandir: “destacar bem na pronúncia as sílabas de um verso ou de uma palavra”, segundo o Aurélio).

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