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20 de março de 2009

50 TIROS EM VILMAR ROSA DUARTE


Aconteceu agora na fronteira. Li a reportagem no portaluruguaiana, que reproduziu matéria do Diário da Fronteira. O pescador aposentado Vilmar Rosa Duarte, de 60 anos, estava nas águas internacionais do rio Quarai, que faz divisa com o Uruguai, na localidade conhecida de Pai Passo, quando foi abordado por uma patrulha do país vizinho. Estava num barco a motor junto com outro companheiro. Para saber o que gritavam, desligou a máquina. Tomando conhecimento da abordagem, ligou novamente, para sair dali. Foi quando aconteceu a guerra.

Os uruguaios abriram fogo e perseguiram o barco dos dois pescadores brasileiros por uns 300 metros. Para escapar do tiroteio, que pelas contas do medo e da fuga, foram cerca de 50, Vilmar jogou a embarcação para a margem. Teve sorte. Embicou numa reentrância do barranco, o que facilitou a escapada. Mas nessa manobra foi atingido duas vezes, por balas que entraram por trás e furaram seus intestinos. Os fugitivos se jogaram no mato fechado, rastejando. O outro pescador resolveu sair na frente, já que estava ileso e tinha mais condições de chamar socorro.

Vilmar viu-se então só, sendo caçado como bandido, ele que pesca desde criança naquela bacia de rios, arroios e sangas. Como temos a mesma idade, 60 anos, pode ser que Vilmar tenha sido meu colega no Romaguera Correa, o grande primário público que formou a todos nós na cidade. Seu nome me é familiar demais e quando vi impresso na notícia, alguma coisa muito clara e precisa veio á tona. Um nome, algumas palavras e a frase que marca esta história, proferida por Vilmar e que me levou a escrever este artigo.

Rastejando ferido, Vilmar avançou mato adentro, só se levantando quando havia alguma clareira. No relato que deu à reportagem do jornal, disse algo que me marcou: “Por duas vezes, parei para morrer no caminho”. Assim somos nós, homens da fronteira. Temos essa intimidade com as palavras. Um pescador perseguido, sangrando, fugindo de um ato de covardia, pois não carregava arma nenhuma, foi capaz de dizer que por duas vezes tinha desistido de fugir, de escapar dessa vida bandida. Se foi assim que Deus providenciou sua despedida no mundo, que assim fosse.

Parou para morrer, porque achou que não tinha mais forças. Mas insistiu. Revidou ao destino que lhe parecia certo. Confiou que poderia ir um pouco mais adiante. Imaginou que seus perseguidores teriam desistido, e que ele poderia voltar para casa, como realmente voltou, onde hoje se recupera do tiroteio. Cinqüenta tiros em Vilmar Rosa Duarte. Em águas internacionais de dois países que não estão em guerra. Dizem os pescadores de Uruguaiana que patrulhas argentinas e uruguaias aos poucos se adonam dos rios. Tínhamos lá, na época do Brasil soberano, uma Capitania dos Portos com fuzileiros navais armados.

Hoje temos uma fronteira abandonada, desguarnecida. Pois só pode ser isso: como o Brasil não está presente, a não ser com seu povo pacífico que ainda pesca por lá, então os estrangeiros se sentem à vontade para tirotear quem estiver por perto. São proprietários daquilo que também nos pertence. Vilmar, sozinho, pescador desarmado, não pode dar conta. É um cidadão só contra uma guerra oculta.

Coloquei o nome de Vilmar no Google. Só tem uma ocorrência: a de uma ação trabalhista que moveu contra uma empresa. Aos 60 anos, Vilmar coleciona ferimentos. E uma vida digna, dedicada ao ofício da pesca no país dos grandes rios e do mato fechado.

RETORNO - Imagem desta edição: foto histórica do porto de Uruguaiana, quando havia navegação, diligências etc. Foto cedida pelo Museu do Rio Uruguai para o jornalista e escritor Geraldo Hasse, autor do livro "Navegando pelo Rio Grande" (Já Editores).

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