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14 de fevereiro de 2009

AMOR PÓS-ROMÂNTICO


Nei Duclós (*)

No clássico Pais e Filhos, Turgueniev (foto) enxerga a força animal de pessoas engessadas em hábitos e comportamentos de um país e de uma época

Amor é abandono: os pais andam na ponta dos pés para evitar que a admiração pelo filho pródigo, enfim de volta à casa, vire desprezo; o estudante pobre e radical oprime a aristocrata, repentinamente dona do seu árido coração; o amigo suporta todas as humilhações do companheiro de quarto para manter acesa sua devoção por alguém que julga seu superior. Todos sofrem em silêncio esse amor fora de hora, pois em 1859, época em que se desenrola a obra-prima de Turgueniev, Pais e Filhos (Cosac Naify, 1994, tradução de Rubens Figueiredo), o realismo dava as cartas e havia um esforço para que o romantismo fosse coisa do passado.

Era o tempo da ascensão das ciências, quando livros até então considerados canônicos caíam no ridículo; das mulheres livres, que, apesar da inteligência e independência, continuavam sendo desprezadas por parte do poder masculino; dos jovens niilistas (termo que apareceu pela primeira vez neste livro), que não aceitavam nenhum tipo de autoridade ou paradigma; dos senhores progressistas, que distribuíam terras, emancipavam seus servos e os transformavam em mão-de-obra assalariada (o que aconteceu com a própria família do autor). Onde caberia o amor, totalmente entranhado na ideia do romantismo, contra o qual se insurgiam as mentes que se emancipavam?

Turguêniev, que sabia das coisas, coloca o amor onde sempre esteve: nas situações irreversíveis ditadas pelos laços consanguíneos (o rebento que nunca se separa do umbigo materno); na solidariedade inata da juventude, que procura protetores e gurus dentro e fora da família; na relação afetiva entre pares que se flagram na arapuca do estranho sentimento. O amor contraria o conforto do mancebo radical, colocando em xeque suas ideias de um novo mundo, livre das amarras das ilusões; rema contra a corrente da vida doméstica, pois as atenções do filho se desviam para a amizade não-correspondida; e desestabiliza a rotina da madame isolada e rica, que vê na paixão pelo niilista um transtorno que precisa ser imediatamente extirpado.

Amor, nas circunstâncias dessa época que Turguêniev reproduz magistralmente, deixa de ficar confinado na literatura romântica ou de aventuras, ou nos hábitos ditados pelos interesses, para se transformar no penetra da festa do realismo. Para que amar, sentimento inútil, se o mundo se revela avesso a qualquer entrega ao outro, se as pessoas exibem uma transparência sem limites, se nada fica oculto nessa sociedade sacudida pela ansiosa necessidade de mudança? Amor por que, se a soberba toma conta de elites e classes subalternas? Essa má vontade, ou desconhecimento, em relação ao amor é uma fonte de conflitos e desperdícios.

Cada personagem encarna uma forma de amor perdido. Paviel, o tio do promissor Arcádio, e um solteirão anglófilo que desafia o niilista para um duelo, ama em segredo a jovem cunhada, que tem medo dele. Arcádio, que se apaixona pela aristocrata, vê sua amada escorregar para as mãos do amigo que tanto admira. Bazarov, o revolucionário contra todas as correntes ideológicas, a tradição, a família e os costumes, perde o prumo diante do envolvimento com alguém que considera superficial, limitada, previsível. Nicolai, o pai de Arcádio, perde a esposa e tenta reencontrá-la na empregada que lhe dá um filho, e com a qual se casa.

Enquanto as emoções correm por um verão cheio de surpresas, os papéis tradicionais acabam se impondo e as tentativas de mudanças caem no vazio. Catia, a moça prendada que toca piano e cede à corte de Arcádio, é a continuidade da família tradicional, em que os cônjuges se submetem à servidão social e dos costumes. Piotr, o chefe dos mujiques, que sonha com a ascensão social, apenas reitera uma situação econômica de patrões e empregados. Os sentimentos verdadeiros se desencontram, submergem no leito modorrento das relações datadas, ou caem em desgraça, como é o caso do velho casal que perde o filho de tifo. Mas triunfa a narrativa que inventa a própria permanência, apesar de tão amarrada aos detalhes provisórios da época em que foi escrita.

Leitura obrigatória dos outros gênios, como Górki e Tchecov, Turguêniev foi um escritor de grande prestígio e importância. Mesmo tendo denunciado a escassez e a precariedade dos radicais, que diziam não acreditar em nada, foi acusado de ter incentivado os niilistas, que tacaram fogo em São Petersburgo. Precisou emigrar em função dessa ameaça. No fundo, os autores existem à revelia do que escrevem. São cultuados ou perseguidos pela percepção coletiva de sua notoriedade e não pelo mergulho nas suas obras. A verdade é que ninguém lê de fato, com raras exceções.

Ler para enxergar o próprio pensamento, para confirmar preconceitos, para se escandalizar ou se deslumbrar são formas equivocadas de um exercício árduo. Pois o único instrumento de um escritor é a linguagem. Não se pode querer que ele traga à leitura os doces e mistérios perseguidos por vidas vazias ou ansiosas. Essa ferramenta complicada, a linguagem, é o único percurso da leitura. Em Turguêniev, cada parágrafo é uma escultura de situações e vivências que saltam vivas de um livro que tem quase um século e meio de vida.

Ele conseguiu enxergar a força animal de pessoas engessadas nos hábitos e comportamentos de um país e uma época. Encontrou no amor a verdade que resiste aos rótulos. Descobriu que o amor não pertence ao romantismo. E que cruza as tendências e modas como uma flecha envenenada, capaz de contaminar as certezas mais definitivas. Turguêniev encontrou no amor não apenas a sobrevivência da espécie, já que não faz sentido a reprodução física sem o sentimento que empurra as pessoas para um abismo de prazer e iluminações. Encontrou, também, a transcendência.

Os velhos que choram no túmulo esquecido do filho, considerado uma promessa para o mundo; a moça que tocava piano e encontrou no pretendente uma razão para se livrar da influência familiar e gerar uma nova realidade; a jovem mãe que redescobre no velho marido a esperança que tinha perdido por uns tempos; esses se contrapõem ao velho solteirão recluso que amarga um amor proibido.

O amor, não o dinheiro, não as ideias, é o que vale. O amor pode. Por isso tudo se insurge contra ele. Por algum tempo, numa quadra da vida, numa época qualquer do mundo, ele parece ser abandono. Mas todos sabem: não é. Porque o amor é como anatomia: destino. E vocação para a humanidade, que nasce para morrer e vive por instinto.

RETORNO - Ensaio publicado neste sábado, dia 14 de fevereiro de 2009, no caderno Cultura, do Diário Catarinense.

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