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27 de janeiro de 2009

VIRA EM CINCO


Nei Duclós (*)

Calçada e asfalto no verão eram o piso da fornalha da tarde. Nem mesmo embaixo do tufo de árvores havia brisa, refresco, alívio para nossos corpos imobilizados pela sede. De olho no carrinho de picolé que passaria ao longe, anunciado pela corneta salvadora, contávamos os minutos que faltavam para nossos compromissos, quando colocávamos à prova a sola dos pés, grossa de tanto jogar no terreno baldio, situado num declive acentuado. A natureza íngreme do estádio definia a natureza de nossas disputas.

Como o tempo era infinito, a partida limitava-se pelo número de gols e não pelas horas que passávamos ao ar livre, nos atormentando com caneladas e gritos. Cada jogo ia até dez e virava em cinco. Disputava-se no par ou ímpar quem iria primeiro para a parte mais alta do terreno, pois, a cavaleiro, podia-se avançar sem muito esforço. Rapidamente, o time do andar superior alcançava o fácil placar de cinco contra qualquer coisa, pois, dali, tiro de meta era quase um pênalti. Todo lance era facilitado pela lei da gravidade. Bastava ao adversário do escrete de cima se jogar para frente que já era meio gol.

Mas, com a mudança de posição, a vantagem virava-se contra o próprio vencedor do meio tempo. O jogo então chegava ao empate terminal dos nove-a-nove, que transformava cada guri num guerreiro medieval, capaz de cortar o braço ou a perna de quem se aventurasse a ganhar a disputa. Não era apenas o tempo reservado à peleja que contava. Mas principalmente o que vinha depois, quando depositávamos nossa carcaça embaixo do umbu e as implicâncias, sarros e provocações atingiam o paroxismo. Os perdedores tinham gana de asfixiar os meliantes que se aproveitavam do resultado para exigir mandados, como ir buscar o picolé no calorão, por exemplo.

Era uma operação complicada. Queimava-se os pés em direção ao sorveteiro e era preciso trazer todas as encomendas numa velocidade que impedisse o derretimento da prenda. Isso costumava acontecer, provocando, aí sim, contendas realmente pavorosas, que arrancavam pedaços naquela pré-adolescência feroz, quando éramos apenas garotos e o mundo, como hoje, jamais se importava com a noção de eternidade que regulava nossas vidas.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 27 de janeiro de 2009, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Sonho de menina, quadro de Juliana Duclós. Para contrapor a brutalidade dos garotos dos anos 50, nada melhor do que a leveza de uma outra abordagem da infância.

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