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16 de dezembro de 2008

O QUE É O GÊNIO?


Nei Duclós (*)

O gênio é aquele que acerta sempre no exercício do seu ofício. Pode cometer falhas na vida pessoal, cair em armadilhas, promover injustiças, magoar, ferir, se arrepender. O gênio pode ser, em quase tudo, uma pessoa normal, mas se destaca por esse detalhe: tudo o que produz é perfeito, sem errar um só detalhe.

Hoje, a tendência é fazer faz tabula rasa das pessoas. A mediocridade triunfante fareja o talento, esse mistério da sabedoria, para esbagaçá-lo de alguma forma. É assim que mantém seu poder. Ninguém escapa. Quantas vezes não vemos alguém negar que Shakespeare realmente existiu? Ou que as grandes descobertas devem ser atribuídas ao cônjuge, ao amigo, ao vizinho de um autor? Ou que o pintor definitivo usava a capacidade dos seus alunos para produzir seus quadros?

Particularmente, implico com a palavra “menor” ao lado de um criador de obras-primas. É importante fazer um reparo: todo Kurosawa é maior. Não existe um só filme de Akira Kurosawa que possa ser classificado de outra forma. Nem vou falar dos mais explícitos, como Dersu Uzalá, Ran, Os Sete Samurais, Sanjuro, Yojimbo. Mas de O Barba Ruiva (1965), em que Toshiro Mifune interpreta o doutor dos pobres, um sábio que ensina, pelo exemplo, seu aprendiz arrogante.

Ele prova que por trás de uma doença incurável há uma desgraça provocada pela pobreza. A medicina é apenas coadjuvante e não protagonista nesse processo complicado, profundo, irredutível e impossível de ser solucionado de maneira simples. Pelo menos, enquanto forem mantidos os privilégios de casta, a soberba dos mais novos, o medo dos idosos, a crueldade e o cinismo dos bandidos, a insânia das vítimas.

Impressiona no Mestre a composição das narrativas, em que os personagens cruzam paisagens hostis de neve, chuva, vento e terremotos, vestindo apenas um quimono. É antológica a cena do desencontro do casal, que ao se despedir tenta reatar. Vemos, representadas visualmente, sem palavras, as idas e vindas, os olhares que não se encontram, as intenções que se anulam mutuamente, formulando uma coreografia dramática.

Assim se expressa o gênio, que tanto nos faz falta. Ele é gerado pelo humano para transcendê-lo. Criatura insondável, existe para nos salvar.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 16 de dezembro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem desta edição: Toshiro Mifune quebra braços e pernas de alguns valentões em "O Barba Ruiva", de Kurosawa. Não existe Kurosawa menor. Outra cena impressionante é quando as mulheres do hospital berram e uivam na beira do poço para impedir que a alma do garoto que se envenenou junto com a família, morra. O chamado para o fundo da terra prende a alma que tenta ir embora. É de saltar da cadeira.

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