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3 de dezembro de 2008

O GRANDE SUFOCO


O título é uma tradução livre de The Big Heat, filme de 1953 de Fritz Lang, que vi ontem na Cinemateca Diário da Fonte. Mas também se reporta ao crime hediondo que é ficar à mercê de gigantescas porcarias que são produzidas em série pela indústria audiovisual bandida, enquanto maravilhas, jóias do filme noir e de todos os gêneros dormem no esquecimento ou rodam apenas na mão dos cinéfilos. Temos pouca noção do Mal que nos fazem ao nos apartar das obras-primas como The Big Heat, que foi lançada no Brasil com o título de Os Corruptos. Nada mais apropriado para o Brasil de hoje: investigador honesto enfrenta a máfia que domina os altos escalões da polícia e da política e paga um preço caro para provar sua inocência e recuperar o cargo perdido.

Não gosto de dar ficha de filme, já que a rede está aí para isso. Prefiro fazer um texto impressionista sobre o que vejo e ouço. O filme de Lang chama-se solidez. O texto, do celebrado roteirista Sydney Boehm , coadjuvado por William P. McGivern (escritores em dupla, bem sob medida para o cinema, que é trabalho de equipe), não tem as sacadas antológicas dos grandes filmes do gênero, aquelas ditas com um mínimo de movimento nos lábios, rosto de metal e olhar sampacu. Mas oferece uma narrativa segura, jamais redundante, com uma lógica encantadora e cenas que se encaixam perfeitamente numa sucessão ascendente de suspense e violência.

A brutalidade se manifesta contra as mulheres e também nelas. A magnífica Gloria Grahame, que faz a debochada e louca amante do gangster interpretado por Lee Marvin, atrai a fúria machista ao ter uma das faces queimada por café quente. Isso gera a mais brilhante fala do filme. Gloria e o herói, o policial interpretado por Glenn Ford, estão frente a frente, com a câmara de olho neles, de lado. Aparece apenas a face sã da mulher, que sugere: “Poderíamos viver apenas de perfil”, diz, num lance de meta-linguagem hilário.

Nenhuma mulher do filme é de brincadeira. A esposa do policial, Jocelyn Brando, mistura sexo e cozinha, vida conjugal tranqüila com cenas sensuais quentes, inteligência e coragem (ela é o parâmetro para o comportamento ético do marido).A viúva interpretada por Jeanette Nolan chantageia a máfia e ironiza a Justiça. E a Outra do veterano policial que se suicida, interpretada por Dorothy Green, levanta o véu da corrupção com seu depoimento. Todas as quatro principais protagonistas femininas acabam mortas. Fritz Lang, o gênio homenageado por Godard em O Desprezo, não veio ao mundo a passeio.

Enquanto as mulheres são fortes, os homens são uns poltrões, com exceção de Bannion, o good guy (dizíamos “mocinho”) que enfrenta todo mundo para vingar a morte da esposa. O cara que se mata, os chefes da polícia que comem na mão do mafioso, o brutamontes que se encarrega dos assassinatos, seu assecla que faz tudo errado, os colegas investigadores que tentam convencer Bannion de que não pode ficar isolado. Em Lang, o homem é o ser adaptado, covarde e mesquinho, enquanto as mulheres jogam pesado em favor do casamento, ou do dinheiro, ou da vingança.

Bem, já contei demais sobre o filme. Podem ir atrás ou pressionem as televisões para colocá-lo na programação (ha ha ha ha, como se isso desse resultado). Quem sabe o Programador do Traço, aquele cara que anda sumido e que colocava grandes filmes quando todos iam dormir, se sensibiliza. Talvez até o Programador do Traço tenha sido compulsoriamente aposentado. “Shane às três da matina? Pirou, vamos colocar Máquina Mortífera 15, isso sim”. Mas esse post ficou grande demais para o que eu queria fazer. Assim mesmo, arrisco um travelling (quem escreve sobre cinema faz travelling): vi O Invencível, do grande diretor indiano Satyajit Ray, de 1956, absolutamente verdadeiro e encantador. O garoto órfão de pai que ganha a oportunidade de estudar em Calcutá é uma das obras de sua famosa Trilogia Apu (nome do personagem), baseado na literatura de um escritor do início do século 20. Filme de impacto, limpo, seguro, belíssimo, com a grandeza que falta à maioria do cinema brasileiro hoje.

E tem também o conjunto de curta-metragens Ten Minutes Older - The Trumpet (que se diferencia da série Cello, com outros diretores) onde cineastas como Wim Wenderes, Spike Lee e o finlandês Aki Kaurismaki (autor do maravilhoso Nuvens passageiras, que também vi recentemente) exibem sua maestria durante os dez minutos propostos. Wenders é mestre, em pouco tempo compõe, baseado em experiência pessoal, uma trama audiovisual de arrebentar (o sujeito que toma sem querer uma dose de peyote e procura desesperado um hospital no deserto americano). Lee mergulha nos bastidores da derrota de Al Gore para Bush, num mini-documentário sobre os bastidores daquele trágico final de campanha. E Kaurismaki é o minimalista genial, quase um gerador de sessões de slides, pintor absoluto do cinema contemporâneo, com um humor poético que roça o bizarro. Há ainda Chen Kaige, que aborda a perda de identidade de uma China que pisa na tradição e opta pelo consumo por meio de uma refilmagem poética da fábula sobre o Rei nu: um equipe de mudança atende os apelos de um cidadão que enlouqueceu e carregam móveis e vasos imaginários de uma casa invisível situada no terreno baldio que outrora abrigara um bairro.

Mas haja espaço para comentar tanta coisa boa. O importante é destacar a necessidade que temos de sair do grande sufoco vendo filmes essenciais. Precisamos nos livrar do açougue a que nos submeteram com a difusão da crueldade, da violência gratuita, do esvaziamento do espírito, da pobreza mental, entre outros malefícios. Cinema de primeira grandeza: é disso que nós, o povo, gosta.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Gloria Grahame tenta seduzir Glenn Ford, o incorruptível, em "The Big Heat". 2. Ida Duclós aponta algo que me escapou sobre a personagem de Gloria: sua grande cicatriz numa das faces é a representação de uma pessoa dividida, entre o mundo do crime e a crítica aos mafiosos, entre a vida fácil e a vontade de ter uma família, entre a honestidade e a falta de ética. 3. No Profissão: Repórter de ontem, terça-feira, Caco Barcellos e sua equipe chegaram juntos na hora da onça beber água. Duplas de jornalistas e cinegrafistas entraram no supermercado saqueado em Itajaí, ficaram junto aos militares com lama até a cintura, entraram nas áreas de risco em Blumenau, Ilhota, Morro do Baú, falaram com as vítimas isoladas, feridas, desesperadas. Foi um up-grade do melhor da grande cobertura que a televisão fez tragédia. Eu me emocionei várias vezes. Santa Catarina, estado onde moro, partiu o coração de todos. O Brasil inteiro esteve aqui, ao nosso lado. Somos ainda uma nação.

BATE O BUMBO - Recebo o seguinte e-mail: "Caro Nei, Só agora li o que você escreveu sobre a coleção de Bossa Nova da Folha, que ajudei a organizar. Muito obrigado por suas palavras. Abraços, Ruy Castro."

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