Nei Duclós
"Céu e Inferno" (ou High and low) é, como todos, um filme sobre cinema: a investigação de um crime de seqüestro é a leitura de imagens e sons. As pistas audiovisuais fecham o cerco sobre o criminoso, que consegue o resgate porque enxerga mais: pelo telescópio, segue todos os passos da sua vítima, o executivo que exibe poder e fortuna na grande janela envidraçada da sua mansão, a cavaleiro sobre a favela. Mas o olhar individual do sequestrador não vence o olhar coletivo, da sociedade e instituições mobilizadas para descobri-lo. É desmascarado por meio dos ruídos que deixa gravados nos seus telefonemas de chantagem, da voz que denuncia sua pouca idade, das opções que acabam entregando a localização do seu esconderijo.
Da mesma forma que a polícia no encalço do bandido, o espectador também precisa palmilhar essa busca da agulha no palheiro vendo o que Akira Kurosawa tece com maestria. Perto de "Céu e inferno", o festejado Blow-up, de Antonioni, que é a descoberta de um crime por meio de uma seqüência de fotos, é apenas um esboço.
Neste consideradíssimo cult de 1963, baseado numa história do escritor Ed MacBain, Kurosawa opõe o céu – o espírito de grupo, a união coletiva, que representa a sobrevivência, a superação e a resistência – ao inferno - o individualismo, a dispersão e o isolamento que geram a fraqueza, a pobreza, a decadência espiritual, moral e material. Não se trata de chamar de paraíso o mundo dos ricos e jogar na condenação eterna o dos pobres, já que o egoísmo e a solidariedade existem nos dois universos sociais. Mas sim de tentar localizar o equilíbrio nos princípios que regem uma vida coletiva e denunciar o crime como resultado da falta de conexão entre os semelhantes.
Toshiro Mifune é o executivo que paga resgate de 30 milhões de ienes pelo o filho do seu motorista seqüestrado por um estudante pobre de medicina e morador da favela situada em frente à sua mansão. O evento surge em meio a uma tempestade corporativa: os outros sócios da fábrica de sapatos querem gerar lucro a qualquer custo, principalmente da qualidade dos produtos.
A princípio, quando descobre que seu filho está a salvo e que o bandido se apossou da outra criança, o executivo prefere ficar com o dinheiro que arrecadou para tomar o poder dentro da indústria e evitar que ela se desvirtue na mão dos sócios. É uma opção que causa escândalo – ele opta pelo individual, carreira, fortuna, família, mas se justifica dizendo que escolhe a permanência do empreendimento, o que seria ficar do lado do bem social.
Mifune sai desse inferno para o céu, quando paga o resgate e assim sensibiliza a população, que fica sabendo da história pela imprensa. É o consenso de uma sociedade coesa (apesar das transformações) que expressam os princípios mais nobres, na visão de Kurosawa. O departamento de polícia, dividido em inúmeras equipes que cercam o seqüestrador por todos os lados e evidências, é esse ambiente ético que quer fazer justiça e devolver a dignidade perdida à vítima, já que o executivo entra em desgraça no trabalho e perde tudo. Ao mesmo tempo, os policiais forçam mão para que o seqüestrador seja pego em flagrante de assassinato dos comparsas, para assim ser executado e não pegar apenas 15 anos pelo crime de seqüestro.
Essa dupla face do céu e inferno não existe apenas no executivo ou na polícia. Também nos jornalistas, que fazem parte do pacto de solidariedade ao redor das vítimas, mas concordam em omitir informações e divulgar notícias falsas para colaborar no cerco ao criminoso. A Justiça fora dos trilhos (o “certo” seria pegar o seqüestrador em vez de levá-lo a cometer outro crime por meio da mentira?); a imprensa como instrumento da investigação policial (o “certo” seria divulgar os fatos sem ceder às ordens policiais?) fazem parte desse rodízio entre o paraíso (o Japão unido) e o inferno (a nação nas mãos das drogas, do crime, da falsidade e do egoísmo).
Eis mais um (como todos) Kurosawa maior, com seqüências antológicas como o pagamento do resgate no trem bala em movimento, cenas maravilhosas como o balanço das providências na grande reunião dos especialistas da Polícia, a compra de heroína no dancing bar, entre outras preciosidades. Filme atualíssimo que aborda a nação que tenta ficar firme para enfrentar o esgarçamento social, a divisão das personalidades em conflito permanente, o caos urbano provocado pela sociedade de classes, o raciocínio lógico pautado pela ética no trabalho. Temas fundamentais, que passam ao largo do cinema atual, tão envolvido em explosões, narcisismos, crueldades, vazio, indiferença, desamor.
Sabe aquele gesto típico japonês de pessoas que se curvam diante dos outros, em sinal de respeito? É o que todos devem fazer em direção a Kurosawa. Assim que devemos nos comportar diante do Mestre.
RETORNO - Imagem deste post: Toshiro Mifune, de costas, na sala envidraçada de sua mansão, olha para a favela onde se esconde o sequestrador.
BATE O BUMBO - Agora sim, dá para escutar meu poema Manhã, musicado e interpretado por Carlinhos Hartlieb. No site está "Manhãs", mas o título original é no singular. O poema foi publicado em 1975 no meu livro de estréia Outubro.
"Céu e Inferno" (ou High and low) é, como todos, um filme sobre cinema: a investigação de um crime de seqüestro é a leitura de imagens e sons. As pistas audiovisuais fecham o cerco sobre o criminoso, que consegue o resgate porque enxerga mais: pelo telescópio, segue todos os passos da sua vítima, o executivo que exibe poder e fortuna na grande janela envidraçada da sua mansão, a cavaleiro sobre a favela. Mas o olhar individual do sequestrador não vence o olhar coletivo, da sociedade e instituições mobilizadas para descobri-lo. É desmascarado por meio dos ruídos que deixa gravados nos seus telefonemas de chantagem, da voz que denuncia sua pouca idade, das opções que acabam entregando a localização do seu esconderijo.
Da mesma forma que a polícia no encalço do bandido, o espectador também precisa palmilhar essa busca da agulha no palheiro vendo o que Akira Kurosawa tece com maestria. Perto de "Céu e inferno", o festejado Blow-up, de Antonioni, que é a descoberta de um crime por meio de uma seqüência de fotos, é apenas um esboço.
Neste consideradíssimo cult de 1963, baseado numa história do escritor Ed MacBain, Kurosawa opõe o céu – o espírito de grupo, a união coletiva, que representa a sobrevivência, a superação e a resistência – ao inferno - o individualismo, a dispersão e o isolamento que geram a fraqueza, a pobreza, a decadência espiritual, moral e material. Não se trata de chamar de paraíso o mundo dos ricos e jogar na condenação eterna o dos pobres, já que o egoísmo e a solidariedade existem nos dois universos sociais. Mas sim de tentar localizar o equilíbrio nos princípios que regem uma vida coletiva e denunciar o crime como resultado da falta de conexão entre os semelhantes.
Toshiro Mifune é o executivo que paga resgate de 30 milhões de ienes pelo o filho do seu motorista seqüestrado por um estudante pobre de medicina e morador da favela situada em frente à sua mansão. O evento surge em meio a uma tempestade corporativa: os outros sócios da fábrica de sapatos querem gerar lucro a qualquer custo, principalmente da qualidade dos produtos.
A princípio, quando descobre que seu filho está a salvo e que o bandido se apossou da outra criança, o executivo prefere ficar com o dinheiro que arrecadou para tomar o poder dentro da indústria e evitar que ela se desvirtue na mão dos sócios. É uma opção que causa escândalo – ele opta pelo individual, carreira, fortuna, família, mas se justifica dizendo que escolhe a permanência do empreendimento, o que seria ficar do lado do bem social.
Mifune sai desse inferno para o céu, quando paga o resgate e assim sensibiliza a população, que fica sabendo da história pela imprensa. É o consenso de uma sociedade coesa (apesar das transformações) que expressam os princípios mais nobres, na visão de Kurosawa. O departamento de polícia, dividido em inúmeras equipes que cercam o seqüestrador por todos os lados e evidências, é esse ambiente ético que quer fazer justiça e devolver a dignidade perdida à vítima, já que o executivo entra em desgraça no trabalho e perde tudo. Ao mesmo tempo, os policiais forçam mão para que o seqüestrador seja pego em flagrante de assassinato dos comparsas, para assim ser executado e não pegar apenas 15 anos pelo crime de seqüestro.
Essa dupla face do céu e inferno não existe apenas no executivo ou na polícia. Também nos jornalistas, que fazem parte do pacto de solidariedade ao redor das vítimas, mas concordam em omitir informações e divulgar notícias falsas para colaborar no cerco ao criminoso. A Justiça fora dos trilhos (o “certo” seria pegar o seqüestrador em vez de levá-lo a cometer outro crime por meio da mentira?); a imprensa como instrumento da investigação policial (o “certo” seria divulgar os fatos sem ceder às ordens policiais?) fazem parte desse rodízio entre o paraíso (o Japão unido) e o inferno (a nação nas mãos das drogas, do crime, da falsidade e do egoísmo).
Eis mais um (como todos) Kurosawa maior, com seqüências antológicas como o pagamento do resgate no trem bala em movimento, cenas maravilhosas como o balanço das providências na grande reunião dos especialistas da Polícia, a compra de heroína no dancing bar, entre outras preciosidades. Filme atualíssimo que aborda a nação que tenta ficar firme para enfrentar o esgarçamento social, a divisão das personalidades em conflito permanente, o caos urbano provocado pela sociedade de classes, o raciocínio lógico pautado pela ética no trabalho. Temas fundamentais, que passam ao largo do cinema atual, tão envolvido em explosões, narcisismos, crueldades, vazio, indiferença, desamor.
Sabe aquele gesto típico japonês de pessoas que se curvam diante dos outros, em sinal de respeito? É o que todos devem fazer em direção a Kurosawa. Assim que devemos nos comportar diante do Mestre.
RETORNO - Imagem deste post: Toshiro Mifune, de costas, na sala envidraçada de sua mansão, olha para a favela onde se esconde o sequestrador.
BATE O BUMBO - Agora sim, dá para escutar meu poema Manhã, musicado e interpretado por Carlinhos Hartlieb. No site está "Manhãs", mas o título original é no singular. O poema foi publicado em 1975 no meu livro de estréia Outubro.
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