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14 de dezembro de 2008

ARTE É LUTA DE CLASSES


Nei Duclós

Estão pontificando adoidado sobre arte, pois o que está em jogo é a posse de verbas públicas: ganhar a parada teórica significa estar sintonizado com as exclusões promovidas pelo privilégio, e assim ter acesso aos recursos reservados para exposições, bienais, cadernos culturais etc. Se você conceituar na contracorrente, desmascarando o jogo bruto da luta de classes no miolo do universo artístico, então despeça-se daquela grana providencial vindo das generosas fontes arrecadadoras. Estou me referindo à recente Bienal do Vazio, em São Paulo, e a prisão de uma pichadora, episódio comentado por Jorge Coli no Mais! deste domingo.

Por que Bienal do Vazio? Porque os poderes se apropriam de todos os espaços, principalmente os que ainda estão vagos. É uma reserva de território: além de se locupletar com os terrenos tradicionais, é preciso assegurar o futuro, tomar posse do que ainda está à deriva. Não é outro o significado da grilagem de terras públicas: os maganos invadem terras do governo porque não podem deixar à mercê da população a posse desse vazio patrimonial.

A Bienal, sob o guarda-chuva da transgressão institucionalizada, pretendeu promover um insight perceptivo ao destacar espaços vazios naquele monstrengo do Oscar Niemeyer no Ibirapuera, um lugar insuportável, quente demais, cheio de concreto exposto, árido e estéril, como costuma acontecer com as obras desenhados pelo queridinho das empreiteiras (que se diz comunista!). Um grupo de artistas emergentes se insurgiu contra o desperdício. Uma jovem artista pichou um dos espaços vazios e agora pode pegar uma cana braba, de dois a três anos.

O ato, que é de vandalismo, justificado ou não, serviu para expor novamente os motivos nobres dos pichadores, que deveriam limpar tudo o que sujaram nos prédios que não pediram sua arte. Essa oposição no fundo reitera o que a produz. Os poderes da arte maquiam os conceitos, celebrando a superficialidade do descartável como se fossem arautos de uma revolução eterna (o que é uma besteira, pois toda ruptura é feita em cima de uma tradição, se você elimina a tradição não há ruptura, não há revolução). A garotada se insurge, dizendo que eles sim são a transgressão. Ambos estão errados, pois intensificam a anti-arte em nome de um avanço cultural teleológico, como se o espírito humano evoluísse assim como as lagartas se transformam em borboletas.

O espírito humano obedece aos ciclos, como a natureza. Ele não avança indefinidamente. Há sempre o retorno, a volta, a reencarnação, a recuperação, o resgate e assim sucessivamente, num movimento circular, em espiral, eterno. Não se trata de linha reta, pois se você coloca um mijador numa Bienal e diz que é arte, o que colocará na seguinte? Um cagador? A pichadora presa diz que sua arte é para o povo olhar e não gostar. Significa que ela olha o povo e não gosta. E, claro, inverte os papéis. Ela exibe um fundo aristocrático, natural num país da exclusão, de escravos, em que todo mundo é senhor.

Já elogiei várias vezes aqui o caderno Mais!, da Folha. Desta vez o destaque é Madona, aquela senhora que dissemina a obsessão pelos gestos sexuais enquanto se esganiça em músicas idênticas. Sem comentários. Ultimamente o Mais! está ilegível,ou seja, deixou de oferecer diversidade de talentos e opiniões para se concentrar todo numa espécie de consenso de celebração do baixo nível cultural. Na edição do domingo passado, destaca a idéia exagerada de que o cérebro é uma gambiarra da evolução e não essa supermáquina com que era vista até há pouco tempo.

O problema é que exageraram sobre o cérebro para criar uma falsa idéia do seu poder e agora, baseados, não no cérebro, mas nessa representação fake, oferecem o antídoto: calma lá gente, não é bem por aí! Irrita o modo como tratam a evolução, como se tudo fosse uma grande sacanagem da natureza, como se os processos naturais fossem o espelho da economia globalizada, cheia de truques e armadilhas. A evolução é séria demais para ser tratada como insumo impactante da mídia.

Em outro artigo, uma entronização do obscurantismo, pois a chamada psicologia experimental (sempre existe um nome pomposo para as novidades) ataca a noção de que a racionalidade é juiz imune a influências. Isso é uma asneira sem fim. A racionalidade trafega do simples ao complexo, ou do complexo precário para a complexidade mais completa. Nada é imune a influência, muito menos a racionalidade. O problema é que a razão foi usada para destruir a liberdade de espírito e agora que o serviço sujo está feito chega alguém e diz: calma lá, gente não é bem por aí.

Tem mais. Um filósofo emérito aborda o plágio na arte e detecta a tendência de que estão colocando em xeque a idéia da autoria. Isso sim é serviço completo. Como já fizeram todos os cânones, tudo o que é bom já está decidido, então nada mais resta para os emergentes. Jamais teremos de novo grande arte, grande literatura, pois tudo está pronto. Então o que deve ser destacado, nesse enfoque perverso, é exatamente a impropriedade do direito à autoria. É por isso que a moça foi lá na Bienal pichar. Para ser reconhecida como autora, para ser levada em consideração, para existir. Mesmo que ela defenda a arte coletiva, é a sua personalidade que está clamando por reconhecimento.

Há também um artigo de um inglês que visitou o Brasil e diz que as mulheres brasileiras deslizam como se estivessem dançando samba. Ora, vai cagar pedra. Seu editor brasileiro, ao lado dele, morria de vergonha das manifestações suarentas dos conterrâneos. Revirava os olhinhos, o sujeito. Quanta colonização, quanto mico. E o Mais! fica difundindo esses troços, de maneira coesa.

Menos, Mais! Há também, na Folha, a tragédia televisionada dos debates culturais. Num deles, Caetano usa a maior parte do seu tempo para gaguejar. Em outro, sobre os 50 anos da Ilustrada, o parâmetro é o caderno cultural dos anos 80 para cá. Em 80 começou a decadência da Ilustrada, quando as reportagens sobre fatos culturais foram substituídas pela difusão dos eventos do show-bizz (ainda se diz isso?), quando o marketing substituiu a notícia. Entre outras barbaridades, houve uma longa campanha mistificadora sobre o grupo The Smiths, que ninguém mais lembra. Era tudo muito forçado.

RETORNO - Imagem desta edição: o horrendo e desumano prédio da Bienal no Ibirapuera, obra de Oscar Niemeyer, o rei do concreto sufocante. O prédio já é o vazio absoluto.

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