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11 de setembro de 2008

A EXPERIÊNCIA


Nei Duclós (*)

Ele entrou com um gravador na mão e foi logo instalando em cima da minha mesa. Tentei ser gentil, mas o seu jeito de andar, se abaixar e pegar os fios era terrível. Na hora em que alcancei a mão no telefone ele fez um movimento tão brusco para me impedir que acabou caindo em cima do lixo. Não riu, só fez uma careta. Levantou-se, puxou o paletó, sempre com aquela expressão torcida. Estava tentando sorrir, lá da maneira dele, só que eu não pude adivinhar, na hora, o que era. Imediatamente começou a me mostrar.

Pôs as mãos no meu pescoço, mas preferiu apertá-lo depois que conseguiu arrancar o meu colar. Parou quando eu comecei a tossir e a ficar roxa. Sentou na mesa enquanto eu me recompunha e procurava o lenço na bolsa. Acendeu o cigarro, tragou fundo e ficou me olhando. Fiquei mal por alguns minutos. Quis ir ao banheiro mas ele não deixou. Não fez nenhum gesto, nem franziu nada. Continuou fumando. Fazia um jogo claro, caçador, não permitia que eu bancasse a desentendida. Tinha deixado a porta encostada e sabia que eu, na primeira oportunidade, me jogaria para o corredor.

Comecei a ficar apavorada porque ele parou de fazer loucuras e ficou curtindo comigo, esperando, talvez, que eu assumisse o que já estava claro. Não pude nem sentir pena de mim, tão apavorada e confusa que eu estava.
- É tu que atende os telefones? perguntou.
- Do meio-dia até as duas eu fico de plantão, respondi, com excitação. Aquela pergunta tinha me feito bem, me dava alguma chance.
- E no resto do dia?
- Tem mais três pessoas.
- Me diz uma coisa, disse, depois de um suspiro e chegando um pouco mais perto de mim. Todos os que telefonam estão querendo mesmo se matar? Isso saiu no jornal. É verdade?
- Bem, suspirei também, tentando dar um rumo para minhas palavras. Parecia que eu tinha achado um furo nele, um ponto de ligação com a maioria dos casos. Já começava a pensar que ele era um necessitado de nossa ajuda, do nosso Pronto Socorro Espiritual.

Ele não deixou continuar. Passou o cigarro para a mão esquerda e com a outra começou a me bolinar. Babava no meu ouvido que eu devia fechar a porta a chave, pois podia chegar alguém, desses teus colegas, com um revólver na mão, isso não seria bom para ninguém, pois tinha também um revólver e ia matar todo mundo que ficasse na frente dele. Respirava depressa, atropelando meu corpo, minha cuca. Eu já estava completamente pirada, não sabia mais o que fazer, pensava em morrer logo, porque me meti nesta barra, essas coisas. Fui me levantar para fechar a porta, mas estava paralisada. Tirou a mão de mim e explicou que não era nada disso do que eu estava pensando. Que tinha visto a notícia sobre nossa agência no jornal e que resolveu fazer uma experiência. Estava absolutamente normal na aparência e nos gestos, eu é que parecia uma louca daquele jeito, me mordendo, tremendo toda.

- Não vai ter um chilique agora, não é?
Parecia um professor. Pegou a garrafa de água que estava em cima da mesa, pôs no copo e me deu, com cortesia. Levei um susto quando o telefone tocou. Pegou meu braço numa chave, tirou o telefone do gancho , ligou o gravador. Repousou todo o corpo nas minhas costas, pôs o telefone na minha orelha, afastou meu cabelo para eu ouvir bem. Escutei uma vozinha do outro lado do fio, era de adolescente, voz de menina. Fui responder quando outra voz ao meu lado respondeu, metálica:
- Não tem ninguém aqui. Isto é uma gravação.
Clic do gravador. Blam do fone no gancho. Fiquei sem respirar. Fechei os olhos e vi a menina que fui, de vestido vermelho, rolando num precipício, num poço, num barranco sem fim.
Abri os olhos. Tudo continuava igual. Ele estava encostado na parede. Acendeu outro cigarro.

II

- Como é seu nome? perguntou e eu comecei a ficar com raiva de toda aquela situação. Meu braço doía muito, mas assim mesmo bati com a mão na mesa, me levantei e comecei a andar para a porta. Ele fez um barulho atrás de mim e senti o cano do revólver na nuca. Mas eu já estava mais à vontade, e resolvi apresentar outro lance. Suspirei para dar a impressão de estar de saco muito cheio, voltei para a cadeira, peguei meu cigarro na bolsa, acendi e disse:
- Vem cá, ô débil mental, qual é a tua?
Ele ficou meio roxo com a pergunta, mas continuei:
- Porra, arrebentar a vida desses coitados que telefonam para cá é muita covardia. Vem cá, tu apanhou do teu pai?
Tinha resolvido partir para cima dele, podia se amedrontar, entrar pelo cano comigo, com gravador, experiência e tudo. Ele continuava meio roxo, me olhando de lado. Parou de fumar. Tremeu todo quando o telefone tocou de novo, mas o barulho o recompôs, deu uma espécie de sorriso cheio de triunfo enquanto se atirava no aparelho. Atendeu dizendo bem depressa: “Não tem ninguém aqui, isto é uma gravação”, batendo o telefone e rindo sem parar. Tossia e coçava a cabeça com o revólver. Dei um pulo em direção à porta, mas um tiro arrebentou o vidro antes que eu encostasse a mão nela. Fiquei parada vendo o corredor vazio, os vidros pequenos indo em direção à escada, brilhavam parecendo pingos de água no sol.

Houve um silêncio, parecia que meu ouvido ia explodir com aquele peso no ar. Ele apertou meu pescoço com o braço e me arrastou para a cadeira.
Quando o telefone tocou mais uma vez, senti o revólver na minha fronte. Me apertou bem, estava suando. Disse baixinho que ia me matar.
- Tentou fugir de mim, eu sou um cara legal, ninguém pode fugir de mim.
Pôs a mão no meu ouvido, tapando o bocal e repetindo que ia me matar. Fechei os olhos e esperei. Ele disse:
- Pode atender agora.
Ia me deixar falar, posso dar um aviso, meu coração estava batendo demais, incômodo demais.
- Alô, disse eu, trêmula.
- Que brincadeira é essa? respondeu a mesma voz de menina. Pensei que fosse uma coisa séria esse negócio aí.
- Pois é, respondi, ele engatilhou a arma, levantei os olhos para aquela testa suada, tensa, excitada.
- Você está se sentindo mal?
Não respondi, engoli e tentei ser natural:
- Não, sabe o que é, fui me desculpando e me flagrando que, por vício estava tentando ser agradável com a consulente. Você é que deve estar com algum problema.
- Por quê você mudou de assunto? perguntou a menina e eu tive vontade de rir, pois me lembrei que deveria ser assim que eu falava quando tinha 12 anos, daquela maneira “dura”, pensando que estava impressionando muito, com a mão na cintura, toda metida.
- Por quê então você telefonou? gaguejei. Só para saber como era?
Não ouvi mais nada. Senti medo que ela tivesse saído correndo, como toda criança, que estava passando um trote e eu ali, desperdiçando minha última chance.
-Não é, voltou a voz e eu quase fiz um ahh: de alegria. Continuou dizendo:
- Queria era dizer uma poesia que eu fiz hoje, mas ninguém me deu bola. Meu irmão disse que eu era uma imbecil, só sabia ficar em casa e não tinha de me escutar. A mãe fez a comida e se mandou. Isso que ela prometeu me dar atenção depois do almoço. O pai, então, só faltou dormir em cima da mesa, nem ouviu o que eu disse. Não sei porque tanto onda com um poeminha, não leva nem dois segundos, quer escutar? Ou vocês também estão sem tempo?
Limpei o suor que me descia na cara, vinha lá da testa, me dando sensação de lágrima. Pensei que ela ia me perguntar se eu estava chorando. Eu estava emocionada com aquela vozinha, as pretensões dela e sentia inveja por ela ser livre daquilo tudo, de trabalhar, de atender pessoas loucas, de gastar amor com desconhecidos, para acabar assim, nas mãos de um assassino.
- Perdeu a língua? disse ela, bem desafinada. Você sabe que eu já fumo? Como é, vai me escutar ou não?
- Pode dizer, consegui responder, num arranque. Imediatamente ela falou do amor dela que não vinha e que ficava esperando sempre no terraço, rimava trança com dança, terraço com abraço, amor com dor. Não consegui entender direito porque eu já estava soluçando alto, pedindo que o cara me matasse de uma vez.

RETORNO - 1. (*) Conto publicado no final dos anos 70 no jornal Movimento e, nesta semana, no espaço Literário do Comunique-se. Faz parte do meu livro de contos "Mágico deserto", ainda inédito. 2. Imagem de hoje: desenho/pintura de Ricky Bols.

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