Há tempos não visitava Sinistrus Joe. Quando acaba o verão, não costumo palmilhar a areia para uma conversa com o velho eremita, que vive numa praia escondida aqui na ilha, num puxadinho ao lado de um grande menir. Mas é sempre a curiosidade de saber o que ele está pensando sobre tudo que me leva novamente para lá. Sinistrus costuma ver o noticiário num aparelho de tevê que existe no bar mais próximo. Lá ele fica isolado, numa mesa do canto, a olhar, furibundo, a tela. Quando acaba o telejornal, permanece na mesma posição. Foi nesse momento que cheguei e cumprimentei.
― Senta aí, escritor, disse ele.
Joe jamais perguntava sobre a vida de ninguém. E falava da vida dele do jeito que bem entendia. Mas desta vez abriu uma exceção:
― Escrevendo muito livro?
― Sim, bastante...e ia começar a desfiar meu rosário de inéditos ou projetos encaminhados quando ele me interrompeu.
― O senhor não tem a postura de escritor. Dá muita bandeira.
― Você acha, Joe?
― Tenho certeza. O senhor escreve demais. Isso pega mal. Tem que vender caro o peixe. O senhor é um cardume de tainha na época das grandes safras. O pessoal joga muita coisa fora. Aprecia, mas descarta demais. Chega uma hora que enjoa. Acabam esnobando.
― O que devo fazer então?
― Falar de maneira pomposa, por exemplo. Não dar bola para a xiruzada. Ficar inacessível. Jamais responder e-mails. Quem responde e-mail ou fica de bobeira no orkut está querendo levar. E leva, como bem o senhor deve saber.
― Não concordo, disse. Escrevo normalmente, um texto por dia, às vezes um poema e muitas vezes algo como um conto ou o capítulo de um romance. Normal.
― Pois aí é que está. Escritor no Brasil não escreve, dá conferência. Por exemplo: quantas conferências o senhor preparou sobre Machado de Assis para este ano? É o centenário do bruxo velho, sabes disso.
― Nenhuma, claro.
― E sobre Guimarães Rosa? Tem gente ganhando os tubos com esses troços. Ficas perdendo tempo, es-cre-ven-do. Ora, ora, ora...
Era o velho Joe implicando comigo. Só podia ser isso. Não me conformei:
― Quer dizer que eu não deveria escrever coisa nenhuma?
― Isso mesmo. Quanto menos escrever, mais tempo livre para acumular capital simbólico. Se não cometeres uma única linha, então, é a glória. Serás como a vestimenta do rei nu, finíssimo.
― Mas aí alguém vai gritar a verdade.
― A verdade, no Brasil de hoje? Em que vendem o Estadão assim no más? Em que empilham bebês mortos no Nordeste sem que ninguém se dê conta até que a coisa fica demais e explode? Em que empalam uma índia excepcional? Em que matam a torto e a direito? Em que cobram os tubos a carne que sobra da exportação? Em que até alfinete é made in China? Não diga besteira.
Eu ia retrucar, mas Sinistrus estava afiado.
― Sabe por que tem tanta gente falando com blandícia na voz? Sabe o que é blandícia não é? É aquela boquinha mole cool, sibilina e meio cusparenta das falas acompanhadas por um olhar de licor de cacau. Tem muita gente falando assim, ciciando, com blandícia, sabe por quê?
― Não. Mas me diga.
― Porque fazem blow job em poderosos da terceira idade. Dá nisso. Ficam com esse vício melífluo no falar. Praticam muito blow job, pois são muitos os estamentos da corrupção que obrigam ao ato. Então eles ficam assim. Com a boca mole de tanto se dedicarem a objetos sem consistência. Aí viram autoridade não sei do quê. E dão entrevista.
Achei demais. Sempre acho demais quando visito Sinistrus Joe, o furibundo. O último brasileiro indignado do país perdido. Mas tinha mais:
― A compra do Estadão não é concentração midiática, é ditadura. Para que serve a ditadura? Para celebrar a si mesmo e assim manter os privilégios da meia dúzia que manda no país. Como celebrar a si mesmo com tantas contradições e problemas, não deixar vazar a realidade? Comprando quem interessa e apertando o cerco à comunicação. Por exemplo: distribuir concessões de rádio e TV para apaniguados políticos, os mesmos do sistema engessado, o que desde 64 cria ilhas de prosperidade enquanto o país se dana. Já houve o boom da classe média na época do início da soja. Agora é o da cana. Sobra dinheiro público movimentando o consumo desenfreado dos grotões.
― Qual a conseqüência disso, Joe?
― Isso atrai os bem pensantes, que vão lá fazer conferência. Ignorantes de que o Brasil é um país endógeno, que tem mercado interno, apesar de informal, desde o início da colonização, que existem inúmeras influências, não apenas dos países “de cima”, basta ver a convivência do Rio Grande do Sul com o Prata. Tivemos estadistas formados no interiorzão e que deram banho de civilização pelo mundo afora, como Oswaldo Aranha encantando Roosevelt, JK deslumbrando a imprensa francesa com seu francês impecável. Eles então dão uma colher de chá e descobrem o Brasil dos grotões, tão rico agora, cheio dessa música gritada horrorosa que dizem encantar as multidões.
― Eles se acham do centro, Joe, os reis da cocada preta.
― Quando que o centro foi centro? Por 25 anos, no século 20, fomos governados pelo chamado Sul. A maioria dos presidentes foram de fora de São Paulo. Infelizmente, agora estamos em plena fase paulista. Desde quando exportar proteína, num país carente de proteína como o nosso, deva ser celebrado? Eles se traem quando dizem "que pena" para a menina que pronuncia palavras fora do seu circuito íntimo da corte carioca, essa pronúncia com erres na garganta, bem melhor, claro, do erres na ponta da língua.
Joe não dava trégua:
― Esse boom da cana-de-açúcar é feito às custas da terra arável que deveria ser usada para produção de alimentos. É como a soja na época dos 70, quando explodiu os financiamentos para nos entregarmos como filhos da mãe aos interesses estrangeiros. Pessoas ficaram milionárias da noite para o dia, plantando soja às custas do dinheiro público. Isso cria ilhas de prosperidade. Lembre do município baiano batizado de Luiz Eduardo Magalhães ou dos melões e uvas dos japoneses às custas do que restam das águas do São Francisco. Os caras vêem apenas uma ilha. E ainda tem preconceito contra ela, pois falsamente se deslumbram. Claro que precisam divulgar sua falsa admiração, estão ganhando os tubos para mentir. E são convidados para tudo que é evento. Obrigam os estudantes a comparecer.
Me dei por satisfeito. Cumprimentei meu irado interlocutor e sumi mais uma vez. Precisava escrever o que acabara de ouvir.
― Senta aí, escritor, disse ele.
Joe jamais perguntava sobre a vida de ninguém. E falava da vida dele do jeito que bem entendia. Mas desta vez abriu uma exceção:
― Escrevendo muito livro?
― Sim, bastante...e ia começar a desfiar meu rosário de inéditos ou projetos encaminhados quando ele me interrompeu.
― O senhor não tem a postura de escritor. Dá muita bandeira.
― Você acha, Joe?
― Tenho certeza. O senhor escreve demais. Isso pega mal. Tem que vender caro o peixe. O senhor é um cardume de tainha na época das grandes safras. O pessoal joga muita coisa fora. Aprecia, mas descarta demais. Chega uma hora que enjoa. Acabam esnobando.
― O que devo fazer então?
― Falar de maneira pomposa, por exemplo. Não dar bola para a xiruzada. Ficar inacessível. Jamais responder e-mails. Quem responde e-mail ou fica de bobeira no orkut está querendo levar. E leva, como bem o senhor deve saber.
― Não concordo, disse. Escrevo normalmente, um texto por dia, às vezes um poema e muitas vezes algo como um conto ou o capítulo de um romance. Normal.
― Pois aí é que está. Escritor no Brasil não escreve, dá conferência. Por exemplo: quantas conferências o senhor preparou sobre Machado de Assis para este ano? É o centenário do bruxo velho, sabes disso.
― Nenhuma, claro.
― E sobre Guimarães Rosa? Tem gente ganhando os tubos com esses troços. Ficas perdendo tempo, es-cre-ven-do. Ora, ora, ora...
Era o velho Joe implicando comigo. Só podia ser isso. Não me conformei:
― Quer dizer que eu não deveria escrever coisa nenhuma?
― Isso mesmo. Quanto menos escrever, mais tempo livre para acumular capital simbólico. Se não cometeres uma única linha, então, é a glória. Serás como a vestimenta do rei nu, finíssimo.
― Mas aí alguém vai gritar a verdade.
― A verdade, no Brasil de hoje? Em que vendem o Estadão assim no más? Em que empilham bebês mortos no Nordeste sem que ninguém se dê conta até que a coisa fica demais e explode? Em que empalam uma índia excepcional? Em que matam a torto e a direito? Em que cobram os tubos a carne que sobra da exportação? Em que até alfinete é made in China? Não diga besteira.
Eu ia retrucar, mas Sinistrus estava afiado.
― Sabe por que tem tanta gente falando com blandícia na voz? Sabe o que é blandícia não é? É aquela boquinha mole cool, sibilina e meio cusparenta das falas acompanhadas por um olhar de licor de cacau. Tem muita gente falando assim, ciciando, com blandícia, sabe por quê?
― Não. Mas me diga.
― Porque fazem blow job em poderosos da terceira idade. Dá nisso. Ficam com esse vício melífluo no falar. Praticam muito blow job, pois são muitos os estamentos da corrupção que obrigam ao ato. Então eles ficam assim. Com a boca mole de tanto se dedicarem a objetos sem consistência. Aí viram autoridade não sei do quê. E dão entrevista.
Achei demais. Sempre acho demais quando visito Sinistrus Joe, o furibundo. O último brasileiro indignado do país perdido. Mas tinha mais:
― A compra do Estadão não é concentração midiática, é ditadura. Para que serve a ditadura? Para celebrar a si mesmo e assim manter os privilégios da meia dúzia que manda no país. Como celebrar a si mesmo com tantas contradições e problemas, não deixar vazar a realidade? Comprando quem interessa e apertando o cerco à comunicação. Por exemplo: distribuir concessões de rádio e TV para apaniguados políticos, os mesmos do sistema engessado, o que desde 64 cria ilhas de prosperidade enquanto o país se dana. Já houve o boom da classe média na época do início da soja. Agora é o da cana. Sobra dinheiro público movimentando o consumo desenfreado dos grotões.
― Qual a conseqüência disso, Joe?
― Isso atrai os bem pensantes, que vão lá fazer conferência. Ignorantes de que o Brasil é um país endógeno, que tem mercado interno, apesar de informal, desde o início da colonização, que existem inúmeras influências, não apenas dos países “de cima”, basta ver a convivência do Rio Grande do Sul com o Prata. Tivemos estadistas formados no interiorzão e que deram banho de civilização pelo mundo afora, como Oswaldo Aranha encantando Roosevelt, JK deslumbrando a imprensa francesa com seu francês impecável. Eles então dão uma colher de chá e descobrem o Brasil dos grotões, tão rico agora, cheio dessa música gritada horrorosa que dizem encantar as multidões.
― Eles se acham do centro, Joe, os reis da cocada preta.
― Quando que o centro foi centro? Por 25 anos, no século 20, fomos governados pelo chamado Sul. A maioria dos presidentes foram de fora de São Paulo. Infelizmente, agora estamos em plena fase paulista. Desde quando exportar proteína, num país carente de proteína como o nosso, deva ser celebrado? Eles se traem quando dizem "que pena" para a menina que pronuncia palavras fora do seu circuito íntimo da corte carioca, essa pronúncia com erres na garganta, bem melhor, claro, do erres na ponta da língua.
Joe não dava trégua:
― Esse boom da cana-de-açúcar é feito às custas da terra arável que deveria ser usada para produção de alimentos. É como a soja na época dos 70, quando explodiu os financiamentos para nos entregarmos como filhos da mãe aos interesses estrangeiros. Pessoas ficaram milionárias da noite para o dia, plantando soja às custas do dinheiro público. Isso cria ilhas de prosperidade. Lembre do município baiano batizado de Luiz Eduardo Magalhães ou dos melões e uvas dos japoneses às custas do que restam das águas do São Francisco. Os caras vêem apenas uma ilha. E ainda tem preconceito contra ela, pois falsamente se deslumbram. Claro que precisam divulgar sua falsa admiração, estão ganhando os tubos para mentir. E são convidados para tudo que é evento. Obrigam os estudantes a comparecer.
Me dei por satisfeito. Cumprimentei meu irado interlocutor e sumi mais uma vez. Precisava escrever o que acabara de ouvir.
RETORNO - Imagem de hoje: Alegria, obra de Ricky Bols. Só a alegria da criação poderá nos levar a atos verdadeiros de libertação.
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