Nei Duclós
Não há lugar para a memória numa terra em desencanto. Tudo o que for lembrado soa como se fosse de outro mundo. Xerifes desarmados, por exemplo. Ou facínoras previsíveis em crimes sob controle. Dinheiro e drogas rompem os limites do humano e abrem as comportas de algo além do drama: o fim da espécie, a fase terminal da vida que imperou por tanto tempo.
Par encarnar o Mal que assombra a rotina da paisagem aparentemente imutável do deserto texano, foi escolhido um ator espanhol, Javier Bardem, ou seja, um alienígena que inicia a perseguição no último reduto da América tradicional. No lugar onde até o gado tinha alguma chance quando havia apenas abate e não extermínio, as pistas não fazem sentido, a brutalidade não cabe nas celas. O destino, que se refugia no sonho, abre mão para uma outra natureza. Ele deixa de ser humano e se transforma numa catástrofe.
Há uma seqüência capital de No country for old men, dos Irmãos Cohen, que no Brasil ganhou o improvável título de “Onde os fracos não têm vez” (o que bate com a velha tendência nada-a- ver tipo “Os brutos também amam”, para o filme Shane, ou “Assim caminha a humanidade”, para Giant, ambos de George Stevens). É quando o facínora persegue o texano, interpretado por Josh Brolin, na fronteira com o México. O assassino não mostra a cara o tempo todo. Os espectadores já estão impregnados de sua presença. Não há mais o que mostrar, a não ser suas ações, seus impactos na vítima em fuga. As balas se sucedem por todo o lado, arrancando pânico e sangue. O rosto animal não aparece, mas somos tomados pelo terror.
Isso se chama cinema. O melhor de tudo é que os diretores não caem nas armadilhas fake de quem pretende fazer filme noir. Ninguém fuma o tempo todo para dizer que estamos nos anos 80. O claro-escuro, que parece ser fruto de um processo de colorização em cima do preto-e-branco, é feito de sombras e de câmaras que capturam de longe as tramas da perseguição. Não nos lembra “ah, isso parece anos 40 ou 50”. Nada disso. É século 21 mesmo, da técnica apurada, da explosão de recursos visuais que jamais sufocam a quem assiste, ao contrário, nos invocam, nos atraem para a tentação de ver o que parece sempre obscuro, confuso, irremediável.
Assistimos à revelia da realização, da obra. O filme não se entrega como um filho da mãe para quem está preso na cadeira, tomado de pânico diante do que vê. Os acontecimentos nos escapam, como se fôssemos obrigados a também entrar numa espécie de perseguição. Nosso olhar pergunta: o que está acontecendo? Esse serial killer foi contratado pela máfia que teve prejuízo na transação do deserto? Esse texano, é mau? Ou é um caçador comum, um pobre bicho qualquer, que só estava no local do crime por acaso?
Perguntamos para não perdermos o fio da história, que se desenrola sem piedade. Sabemos que tudo desaguará em mais tragédia. Não temos ilusão de algo acabará bem. O destino, encarnado no bruto cerebral e sádico, não presta atenção aos nossos apelos. Vai se consumando, como naufrágio previsto pelas blasfêmias. Somos então atirados no meio de uma procissão de horrores, sem jamais nos perguntar o que estamos fazendo ali. Sabemos que não perdemos tempo ao assistir o filme. Porque tudo o mais é desperdício a não ser ver o cinema de verdade, tão raro nesta época de vazio.
Não saímos habitados da obra, pois ela não faz parte da cultura, da emoção, ou da arte. É algo maior. É como se uma bomba de plasma explodisse no nosso nariz. É como se Van Gogh fosse o pesadelo dos mais cruéis desenhos de Goya. É como se o mundo fosse um cenário de sombras, a solidão nossa única realidade, o assassinato a única ocupação, o medo a única missão. Sonhamos, sim, com um mundo melhor. Mas é presunção nossa, como diz o personagem visitado no final pelo velho xerife, interpretado por Tommy Lee Jones, querer que as coisas não aconteçam dessa maneira.
Esta tudo escrito, não apenas no romance original de Cormac McCarthy. Está escrito na neve da montanha misturada aos cascos dos cavalos exaustos. Está escrito na mesa do café frio e intragável da casa em ruínas. Está escrito neste incomparável cinema impiedoso, que os americanos fazem para nos assustar. Nós, que pertencemos a um sonho feliz de universo, somos chamados às falas pelos artistas de um povo mutante, fruto de sobrvivências ancestrais de mortes em massa e que nos preparam diante do que há por vir. E virá, essa avalanche de coisas que só Deus, dizemos nós, é capaz de segurar.
RETORNO - Imagem de hoje: Javier Bardem, a maior encarnação do Mal no cinema, a exemplo de Jack Palance em Shane.
Não há lugar para a memória numa terra em desencanto. Tudo o que for lembrado soa como se fosse de outro mundo. Xerifes desarmados, por exemplo. Ou facínoras previsíveis em crimes sob controle. Dinheiro e drogas rompem os limites do humano e abrem as comportas de algo além do drama: o fim da espécie, a fase terminal da vida que imperou por tanto tempo.
Par encarnar o Mal que assombra a rotina da paisagem aparentemente imutável do deserto texano, foi escolhido um ator espanhol, Javier Bardem, ou seja, um alienígena que inicia a perseguição no último reduto da América tradicional. No lugar onde até o gado tinha alguma chance quando havia apenas abate e não extermínio, as pistas não fazem sentido, a brutalidade não cabe nas celas. O destino, que se refugia no sonho, abre mão para uma outra natureza. Ele deixa de ser humano e se transforma numa catástrofe.
Há uma seqüência capital de No country for old men, dos Irmãos Cohen, que no Brasil ganhou o improvável título de “Onde os fracos não têm vez” (o que bate com a velha tendência nada-a- ver tipo “Os brutos também amam”, para o filme Shane, ou “Assim caminha a humanidade”, para Giant, ambos de George Stevens). É quando o facínora persegue o texano, interpretado por Josh Brolin, na fronteira com o México. O assassino não mostra a cara o tempo todo. Os espectadores já estão impregnados de sua presença. Não há mais o que mostrar, a não ser suas ações, seus impactos na vítima em fuga. As balas se sucedem por todo o lado, arrancando pânico e sangue. O rosto animal não aparece, mas somos tomados pelo terror.
Isso se chama cinema. O melhor de tudo é que os diretores não caem nas armadilhas fake de quem pretende fazer filme noir. Ninguém fuma o tempo todo para dizer que estamos nos anos 80. O claro-escuro, que parece ser fruto de um processo de colorização em cima do preto-e-branco, é feito de sombras e de câmaras que capturam de longe as tramas da perseguição. Não nos lembra “ah, isso parece anos 40 ou 50”. Nada disso. É século 21 mesmo, da técnica apurada, da explosão de recursos visuais que jamais sufocam a quem assiste, ao contrário, nos invocam, nos atraem para a tentação de ver o que parece sempre obscuro, confuso, irremediável.
Assistimos à revelia da realização, da obra. O filme não se entrega como um filho da mãe para quem está preso na cadeira, tomado de pânico diante do que vê. Os acontecimentos nos escapam, como se fôssemos obrigados a também entrar numa espécie de perseguição. Nosso olhar pergunta: o que está acontecendo? Esse serial killer foi contratado pela máfia que teve prejuízo na transação do deserto? Esse texano, é mau? Ou é um caçador comum, um pobre bicho qualquer, que só estava no local do crime por acaso?
Perguntamos para não perdermos o fio da história, que se desenrola sem piedade. Sabemos que tudo desaguará em mais tragédia. Não temos ilusão de algo acabará bem. O destino, encarnado no bruto cerebral e sádico, não presta atenção aos nossos apelos. Vai se consumando, como naufrágio previsto pelas blasfêmias. Somos então atirados no meio de uma procissão de horrores, sem jamais nos perguntar o que estamos fazendo ali. Sabemos que não perdemos tempo ao assistir o filme. Porque tudo o mais é desperdício a não ser ver o cinema de verdade, tão raro nesta época de vazio.
Não saímos habitados da obra, pois ela não faz parte da cultura, da emoção, ou da arte. É algo maior. É como se uma bomba de plasma explodisse no nosso nariz. É como se Van Gogh fosse o pesadelo dos mais cruéis desenhos de Goya. É como se o mundo fosse um cenário de sombras, a solidão nossa única realidade, o assassinato a única ocupação, o medo a única missão. Sonhamos, sim, com um mundo melhor. Mas é presunção nossa, como diz o personagem visitado no final pelo velho xerife, interpretado por Tommy Lee Jones, querer que as coisas não aconteçam dessa maneira.
Esta tudo escrito, não apenas no romance original de Cormac McCarthy. Está escrito na neve da montanha misturada aos cascos dos cavalos exaustos. Está escrito na mesa do café frio e intragável da casa em ruínas. Está escrito neste incomparável cinema impiedoso, que os americanos fazem para nos assustar. Nós, que pertencemos a um sonho feliz de universo, somos chamados às falas pelos artistas de um povo mutante, fruto de sobrvivências ancestrais de mortes em massa e que nos preparam diante do que há por vir. E virá, essa avalanche de coisas que só Deus, dizemos nós, é capaz de segurar.
RETORNO - Imagem de hoje: Javier Bardem, a maior encarnação do Mal no cinema, a exemplo de Jack Palance em Shane.
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