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24 de maio de 2008

A VERDADE SOBRE OS ANOS 60


Nei Duclós (*)

Tudo o que é relacionado, hoje, aos anos 60 era, nos anos 60, considerado um horror. Por exemplo: cabelo comprido. Nas capitais provocava apenas xingamento, má vontade, deboche. Mas no interior a punição era o apedrejamento. Outra: rock. Ligado à sujeira e à vagabundagem, rock era coisa de pessoas desviadas do rumo. Dava cadeia. Mais: ser de esquerda. Ninguém tolerava um esquerdista. As bocas se inflavam com o xingamento gritado: comunista! O chic, o elegante, era ser de direita. Ser reaça era o fino. Comunista era morto a paulada.

Em relação às mulheres, a barrava pesava ainda mais. Não havia mulher liberada. Existiam as casadas e as solteiras. O resto era uma pouca vergonha. Sexo livre tinha outro nome. Querem mais? Cinema de vanguarda: Godard esvaziava os cinemas. Filme com gente de olho parado era recebido aos pontapés. Vi gente sair berrando das sessões de Glauber Rocha. Ingmar Bergman? Piada de intelectual. Dava sono. “Não entendi”: eis a frase mais ouvida depois de um Antonioni.

Poeta lido chamava-se J.G. de Araújo Jorge. A vanguarda seca e granítica, João Cabral, os Irmãos Campos, os transgressores Mario e Oswald de Andrade, o tísico Bandeira ou o desencantado Drummond não faziam parte das prioridades nacionais. Romances, os de Sidney Sheldon ou algo parecido (não sei, agora tudo se embaralha). No máximo um Jorge Amado. Revista impressa: ainda imperava a Seleções, com suas seções “Piadas de caserna, Rir é o melhor remédio, Meu tipo inesquecível”. Quando surgiu a Realidade, já no fim da década, com um sucesso estrondoso, a censura caiu matando. A mesma coisa aconteceu com o Pasquim. Com uma agravante: mais tarde, tiraram o crédito do Tarso de Castro como fundador do jornal alternativo, que chegou a vender 200 mil exemplares por semana. Os que se atribuíram o feito hoje estão milionários, já que “lutaram contra a ditadura”.

Quem lutou de fato contra a ditadura, morreu. Os sobreviventes dançaram conforme a música. A repressão, assim como a escravidão, foi instalada em rede por todo o tecido social. Não havia como escapar. Protagonistas tardios fizeram carreiras batendo no peito. A verdade é que a ditadura não foi derrotada ainda. Costumam esquecer que o movimento das Diretas-Já perdeu a batalha no Congresso em 1984. O primeiro presidente civil depois do regime militar era vice de uma chapa que não tinha assumido. Não poderia, portanto, ascender ao cargo. A política econômica é praticamente a mesma, tanto é que os velhos tzars da economia continuam pontificando.

Ok, mas e o voto? Considero o voto útil o novo voto de cabresto. Nossos governantes são eleitos num sistema político engessado, onde um voto na selva (derrubada) vale dez das grandes cidades. Nesse quadro, a classe política não se renova. Sobrevive ainda a Medida Provisória, invenção da ditadura que permite o Executivo legislar.

O passado nos escapa porque elegemos algumas certezas como definitivas. Nestes 40 anos desde 1968 o tema se gastou com tanto documentário e tanta saudade fajuta. Em qualquer resgate audiovisual dos 60, o sonho sempre acaba. Isso foi sendo aos poucos substituído pelo ano que não terminou. Engraçado, comemorei o fim de 68 no dia 31 de dezembro. Como assim não acabou?

O que fica dos 60 é essa defasagem entre as versões oficiais, as que geram grana, e a grande periferia dos acontecimentos, onde tudo foi decidido. A revolução do comportamento não foi exclusivo da época, mas uma herança. As mulheres sempre trabalharam, com dupla jornada de trabalho ou não. Parece que hoje há um consenso, expresso em contundência fanha, de que a “mulhééérrr” só deu a volta por cima nos 60. E aquelas mulheres liberadas dos anos 20, estavam “adiante do seu tempo”?

O cosmopolitismo, a vida boêmia, a libertação das amarras dos relacionamentos, a insurgência da juventude (antes conhecida como mocidade) já existiam, minoritárias, antes que a histeria dos 60 gerasse a ilusão de que tudo mudou só ali, naquela quadra de tempo.

Mudou, nada. Continua a mesma coisa: a poderosa sacanagem sendo estocada pela guerrilha da coragem e da vontade de viver. Hoje, o que há de mais concreto sobre os anos 60 é que minha geração chega enfim aos 60 anos. Como diria Mário Quintana: por favor, não me chamem de sexagenário.

RETORNO - (*) Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Monica Vitti, a musa de Antonioni.

"DIÁRIO DO LEITOR"

Nesta seção da edição impressa do Diário Catarinense, foi publicada a seguinte carta, no espaço "Sobre o DC":

"Excelente o artigo "O que é música?", de Nei Duclós, publicado no caderno de Variedades do DC de 20 de maio. Tudo o que diz o articulista é verdade. É impossível entrar numa loja, num ônibus ou deixar as janelas abertas em qualquer lugar sem ouvir batidas e palavras repetidas, gritando aos nossos ouvidos. O grande músico húngaro Kodaly falou: "Se você não aprende a ouvir boa música até os quatro anos de idade, vai ser difícil aprendê-lo mais tarde". É o mesmo que aprender línguas: até uma certa idade, nós adquirimos a capacidade de ouvir sons e descartamos outros que não são usados ao nosso redor. Mais tarde será difícil a quem não foi educado ouvir e pronunciar tais sons. Seria ótimo que acostumássemos nossos filhos a ouvir e apreciar boa musica o mais cedo possível".

Helga Szmuk
Aposentada - Florianópolis

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