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6 de maio de 2008

O BRASILEIRO ARANHA


Nei Duclós (*)

Sabor de picanha criado em laboratório; ideologias sob medida; religiões de resultados; máquinas que não duram um semestre: o conceito de descartável contaminou todas as atividades humanas e chega com força na literatura, na moral, nos princípios. Nacional e mundial são palavras obsoletas, devoradas pela idéia de global, que significa não ser de lugar nenhum. O único lugar habitável é o dinheiro.

Memória, poesia, sonho também ocupam a vitrine de badulaques. Com um agravante: descobriram o DNA da emoção. O poder seduz e vampiriza almas para atingir a essência. O real é apenas conseqüência. Se agora é possível dominar a medula virtual que comanda o espetáculo, então o circo todo está contaminado.

Essa situação nos remete a uma cena famosa, que consta no livro “Porta para o infinito”, do brasileiro (nascido no interior de São Paulo) Carlos Aranha, que assinava com o nome artístico Carlos Castaneda. O mestre Juan Matus ensinava a idéia de nagual, que engloba o incognoscível, e o tonal, que reúne tudo o que pode ser visto e entendido. Deus está no nagual? perguntou o aprendiz. Não, disse o bruxo, Deus também faz parte da mesa do tonal (e incluiu o saleiro no acervo de objetos na frente do aluno, para representar o que havia dito). Tudo o que imaginamos, tocamos, conhecemos está nesse círculo apontado por Don Juan. O resto é o Outro Lado que nos cerca. “Você está rodeado pelo infinito”, disse o professor para o aluno abismado.

Por um tempo (enquanto o autor vendia bastante) virou moda esculachar Castaneda, como se ele fosse o símbolo dessa enganação que tomou conta do imaginário e da cultura internacional. Clones verdadeiramente vigaristas aproveitaram, para o mal, as revelações desse antropólogo desconhecido, apesar de famoso. Por ser Aranha, ele pertencia a tradicional família paulista (com um ramo no Rio Grande do Sul). Aos 15 anos foi enviado para Buenos Aires e de lá para a Califórnia. Um dia, confessou que o tio, político de grande prestígio, seria candidato a presidente no Brasil. Mas Oswaldo Aranha, como se sabe, foi colocado de lado em favor do marechal Lott, que perdeu para Jânio Quadros.

Naturalizado americano, seguiu os conselhos do mestre e apagou a história pessoal. Aos poucos, juntando os cacos de sua biografia partida, a velha história de que teria nascido no Peru (sustentada pela revista Time nos anos 60), cai por terra. Confundido com um homônimo, devido ao Castaneda, o brasileiro Carlos facilmente virou hispânico, um equívoco comum na percepção ianque. O sobrenome Castaneda fazia parte de um código familiar e fora adotado pelo avô materno, que criou o neto numa fazenda.

O tempo encarregou-se de transformar seus livros, que enfeixam uma tese antropológica surpreendente, em mais um vetor de alienação e auto-ajuda. Tudo o que está revelado, como a sofisticada cultura de povos ancestrais dos continentes americanos, e o pulo dado quando houve a Conquista, acabou numa região de sombra.

Enjeitada pela universidade que a gerou, a obra de Carlos guarda desafios importantes para o futuro. Nela, há espaço para o nagual, um lugar que a avalanche descartável não atinge. Enquanto isso, ele é fonte (jamais citada) de inspiração para inúmeros filmes e livros. Pois quem leu Castaneda sabe de onde George Lucas tirou a idéia da Força e de todos os ensinamentos dos Jedis.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 6 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Mais informações sobre o assunto acima neste endereço. Sempre na vanguarda, o site Consciencia (média de sete a oito mil visitas únicas/dia), de Miguel Duclós, levantou esta lebre da origem certa de Carlos Castaneda. 3. Imagem de hoje: Carlos Aranha, mais tarde Castaneda.

4. "Brizola: Tempos de Luta" ganhou o prêmio de melhor montagem no festival de cinema de Recife, encerrado domingo. A montagem do documentário de Tabajara Ruas foi feita por Ligia Walper. Soube, pelo blog do Luiz Carlos Merten, que cobraram de Taba um filme menos a favor de Brizola. É muito engraçado. São profundamente tendenciosos contra Brizola e como são tendenciosos, acham que os outros são ou devam ser iguais a eles. A opção de Tabajara Ruas foi filmar o mito e não se perder em picuinhas pessoais, que envenenaram a biografia do grande estadista. Destacou a obra e resgatou a grandeza do herói que se foi. Nada mais cinematográfico, nada mais cultural. Mas querem, claro, que falem mal da fazendinha do Uruguai.

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