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2 de fevereiro de 2008

TRÊS ANINHOS


Nei Duclós (*)

Três anos é a adolescência da primeira infância. Chinelos voam para o quintal, portas de quartos são devassadas por mãozinhas firmes, programas favoritos ficam inacessíveis graças à postura desafiante da espelhinho sem aço, bracinhos atacam barrigas em repouso, tapas estalam no meio das conversas, águas de origem obscura inundam a sala, visitas são recepcionadas com comportamentos bizarros, e gritos agudos povoam a casa por motivos desconhecidos.

E existem as frases de advertência, para não tirar nada que esteja em determinado lugar, seja onde for. Todos os badulaques são sagrados, especialmente os que podem provocar algum transtorno, como pequenos guarda-chuvas chineses coloridos, e jamais podem desaparecer de vista. O horário nobre é dedicado ao Bob Esponja e jamais ao noticiário. O pão tem que ser de milho, cortado fino e sem casca. Mamadeira, só numa temperatura exata de graus centígrados que nenhum adulto jamais acerta na primeira vez.

Quando há uva, pede laranja, quando há os dois, quer ameixa, quando tem de tudo, lembra de um certo iogurte que já foi consumido. Balas naturais enjoam, é preciso ser daquelas bem artificiais, que imitam “moiango”. O almoço é uma longa e paciente celebração de detalhes. O prato é o que não está mais disponível, o bife é sempre de casquinha crocante, o milho, picadinho, mas também é importante ter alguma sobra na espiga para ser devorado com essa alternativa.

No passeio e nas compras, a preferência é por locais proibidos, como aprontar danças no meio do estacionamento, sair correndo em direção à rua. Mas já existe noção de comércio e na maioria das vezes leva o produto escolhido, como a maçã especial fisgada na pilha, para o caixa registrar.

Se falar que não dispomos de dinheiro para tanta atividade, basta ir no banco, lá a máquina sempre despeja algum. Sair da praia, nem pensar, sob pena de uma chuva de areia, especialmente depois que você deu a última mergulhada do dia. Se o sorvete acaba é hora de colocar mais no potinho, e desta vez não uma quantidade razoável, mas algo exagerado, que transborde.

Não se sabe de onde tiram tanta personalidade, talvez do mau exemplo dos adultos, ou é possível que cheguem prontas de lugares ermos do universo, pautados por algum tipo de escassez. Chegam não com fome, mas com vontade de inventar encrenca. A arma que costumam brandir é a da fofura, pois ninguém resiste a uma bochecha sorridente, um beijo estalado, um abraço sem motivo aparente. Aqueles olhinhos pretos te enxergam bem no fundo e já estás perdido: é hora de dar uma volta de carro na quadra, senão ninguém dorme.

Uma história é lida mil vezes sem descanso para ouvidos atentos, uma resposta é repetida até a insânia sem que haja trégua na mesma pergunta. Todas as flores que brotarem nos domínios domésticos ou perto dele devem ser colhidas, junto com frutas raras pacientemente aguardadas, como romãs que ainda não chegaram ao ponto.

Mas também há compensações. Um chamado insistente de “vovô!” derrama um pote de mel no coração exausto. Um gesto delicado de dobrar todas as peças da roupa, guardadas carinhosamente no armário, vale por mil travessuras. Um pedido mimoso a favor de um providencial pacote de “boiacha com fuinho” desencadeia exclamações deslumbradas.

Mas logo, logo, voltamos à estaca zero. A dúvida insistente ecoa pela manhã inteira. O choro sem motivo aparente acaba expulsando todo mundo do recinto, que é devidamente fechado pela insolência. Quando a situação parece perdida, eis que um lanche bem recebido acaba provocando o sono reparador, não só para ela, mas para quem está de olho na criatura 24 horas por dia.

Bastam alguns minutos ferrada nos sonhos para todos sentirem saudade. Começa então o balanço das novidades do dia, o que foi dito e feito pela pirralha encantadora. Aí sim temos a devida dimensão do que significa uma criança aos três anos de idade, quando dão um baile poderoso aos que estavam babando com a bebezice e agora estão às voltas com uma personagem complicada e desafiadora.

E isso tudo é só um ensaio. O que está por vir é muito mais intenso. Haverá vovô para tanta vida? Claro que sim. Tudo se renova quando Deus envia alguém para nos lembrar do que somos realmente feitos.

RETORNO - 1. Crônica publicada neste fim-de-semana na revista Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Maria diante de um quadro da mamãe Juliana.

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