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28 de fevereiro de 2008

O RESPONSÁVEL PELO GOLPE

Agora posso contar. Fui o responsável pelo golpe de 31 de março de 1964. Por isso não me livrei dessa data e a carrego intacta para um futuro ajuste de contas, que jamais virá. Lembro bem. Foi o dia em que briguei com meu pai. Eu estava naquela idade apressada, em que os anos se contavam aos pares, contrariando a lógica, mas forçando o amadurecimento: tinha 15 “para” 16 anos, como se alguém pudesse fazer 17 depois dos 15. Mas o 16, no caso, era para dizer que eu me tornaria adulto logo ali, depois da esquina do tempo. A ansiedade acumulada explodiu numa recusa.

Queriam que fizesse uma compra, mas uma ocupação qualquer me impedia. Talvez porque fosse já tarde da noite e eu restava concentrado em casa, entre ausências de irmãos e irmãs, que tinham ido embora. Eu ficara, tardio na espera da liberdade, que viria numa viagem definitiva à capital nos próximos anos. Escrevia alguma coisa naquela noite, talvez. Ou escutava rádio. Ou simplesmente imaginava olhando para o teto, tela favorita de um cinema particular. Desaforado, fiquei indiferente à ordem que emanara da autoridade paterna, e que tinha, para meu espanto, o mudo consentimento materno.

Eu me enganara. Achava que a mãe ficaria ao meu lado, pois nos entendíamos sobre as manias e pressões a que éramos submetidos. Talvez tenha sido essa defecção, que soava como uma traição, que me deixara desconfortável, para não dizer furioso. Tive de cumprir o encargo, mas antes contrariei a formação católica pautada pela obediência e a civilidade (10 em comportamento todos os anos no colégio) e vigorosamente bati a porta ao sair.

Para compensar a fúria, não encontrei o que pediam. Voltei triunfante e avisei a novidade, pronto para voltar ao quarto. Ao que o seu Ortiz, sacudindo o dedo, ordenou para que eu fosse mais adiante conseguir o que queria. E advertiu para não bater a porta, senão haveria a punição merecida. Foi então que, lavado em desonra, saí silenciosamente e raspei calçada por um bom tempo, até encontrar a encomenda. Não lembro o que era. Talvez um remédio, ou algo assim.

Só sei que, feito o carreto, como se dizia, pude ir para a cama, onde providenciei o delírio de uma terceira guerra mundial. Liderava os vitoriosos, trucidando cada adversário com um esmigalhar de cabeças, apertadas entre os vãos de inúmeras portas. Exausto, aos prantos, dormi, decidindo não comparecer à aula do dia seguinte, o primeiro de abril, dia da Mentira.

Era um ato de covardia, pois aproveitaria a ausência do pai, que viajaria cedo. Seria também uma forma de me vingar, exibindo a revolta que me consumia. Precisava deixar claro que tudo aquilo provocara uma ruptura profunda. Seria o começo da vida adulta? Ou sua impossibilidade eterna, já que me entregara a birras e tratava meus pais como se eu tivesse o direito de jamais crescer?

Peter Pan foi sacudido em cima da hora, por Dona Rosinha, que prometia contar a teimosia do filho para o marido. Achei prudente levantar e sair. Não tomei café, pois isso fazia parte da batalha. No colégio, marista, rigoroso, fui impedido de entrar. Somei a atitude miserável a de outros, já escolados naquele tipo de gazeta escolar. Chegar tarde, perder a primeira aula fazia parte dos hábitos dos preguiçosos. Como eu era um dos primeiros da classe (havia meritocracia naquela época) causou revolta a punição promovida pelo irmão Diretor, cognominado O Roxo (pelas veias saltadas no rosto) de me deixar junto com o resto.

Então nos reunimos no grande campo de futebol que existe na parte inferior da área externa do Colégio. Lá, um dos gazeteiros, suspirando, disse, aliviado: “Enfim rebentou a revolução”. Imaginei a revolução das esquerdas, dos trabalhistas, da redenção, da ressurreição e da carne. Como, onde? gritei, afoito. “Claro que rebentou a revolução”, disse o outro. “Ou vamos ficar nessa situação até quando?” Ele se referia à republica comuno-sindicalista, promovida pelo governo João Goulart, a mais sinistra calúnia histórica do Brasil.

Foi aí que caiu a ficha. Minha desobediência, neurastenia, desaforos contra a autoridade dos pais, a chegada em atraso no colégio, tudo isso tinha provocado uma grande punição. Eu desencadeara o golpe. Achava que seria perdoado. Pelos meus pais, sim. Pela História, jamais. “Vejam o que você fez”, me dizem no tribunal do Destino. “Aluno exemplar hem? Menino bem educado, sei!” Eu tinha rompido os laços com o Bem. E o Mal caíra em cima com todo o seu ímpeto.

Por isso continuo com a vã esperança de reverter esse processo, desconstruir a ditadura e retomar o que perdi naquela data fatídica. Quero me reconciliar com o que poderia ter sido, se fosse cordato e obediente e comprasse aquela joça sem fazer barulho. Nada aconteceria e estaríamos ainda gozando o Brasil soberano, o país inventado exatamente pelos que nos criaram com tanto rigor.

Se isso não for possível, se não der para des-rebentar o golpe, se não houver possibilidade de retomar o footing na praça, o cinemascope das quatro, a glostora e a gomina, a calça de brim-coringa, a missa das oito na catedral, a família sentada nas cadeiras preguiçosas no verão, o rio Uruguai cheio de piavas, as pandorgas com roncador, o campeonato de bulitas, o peão com duas puas, a águida de cinco palos, os cadernos caprichados, as redações elogiadas, as gurias do Horto desfilando em massa no Sete de Setembro, se tudo isso não for possível, então peço desculpas aos tribunais e quero que tudo vá para a puta que os pariu.

Porque dá raiva ser responsável pelo golpe e continuar fazendo desaforo, sem jamais assumir o poder.

RETORNO - Imagem de hoje: o presidente João Goulart, ao lado da esposa Maria Teresa, no famoso comício da Central do Brasil.

27 de fevereiro de 2008

ANOS DOURADOS: CAIU A FICHA


Escrevi o seguinte há dois anos, a 12 de fevereiro de 2006: “JK é um fenômeno. Foi só assumir a presidência para haver um baby boom de gênios. Como se sabe, todos os que brilharam durante seu governo nasceram no dia da sua posse. Assim, como apenas três anos Pelé foi campeão do mundo, João Gilberto e Tom Jobim lançaram a bossa nova, engatinhando o Nelson Pereira dos Santos lançou as bases do Cinema Novo e a arquitetura moderna brasileira, que jamais começou com o prédio do Ministério do MEC da era Vargas, mas em Brasilia, foi uma explosão precoce que até hoje assombra o mundo. Todos esses incríveis eventos foram obra de JK e não, como se sabe, de Vargas, que preparou a cama para quem o sucedeu.”

Hoje, 27 de fevereiro de 2008, Ruy Castro escreve na Folha o seguinte (seleciono trechos): “Quantas vezes você já não leu isto? No tempo de JK (1956-1960), o Brasil viveu os anos dourados. Bem, vejamos. João Gilberto gravou Chega de Saudade em 1958. Mas aquilo era a culminância de um processo iniciado dez anos antes, no governo menos bossa nova e mais borocochô do milênio: o do marechal Dutra. O mesmo quanto ao concretismo -Décio Pignatari, os irmãos Campos e o suíço Eugen Gomringer já faziam poesia visual desde 1952, quando o presidente era Getúlio. E Grande Sertão: Veredas foi realmente lançado em 1956, pouco depois da posse de JK. Mas Guimarães Rosa escreveu-o durante Getúlio, dando-lhe os retoques e pingando o ponto final sob o opaco governo Café Filho. E o cinema novo? Não existia sob JK. Rio 40 Graus é de 1955, sob Carlos Luz e Nereu Ramos, que sucederam Café brevemente. A própria expressão "cinema novo" só seria inventada pelo crítico Ely Azeredo em 1961, com Jânio presidente. Deus e o Diabo na Terra do Sol foi rodado em 1963, sob Jango, e lançado já na ditadura militar.”

Mesmo reconhecendo Getúlio, Ruy Castro não quis dizer: foi tudo obra da era Vargas. Como se o Dutra não tivesse sido indicado candidato por Getúlio. Como se a Era Vargas não tivesse durado até 1964. Mas pelo menos levantou a lebre, há anos levantada aqui. O Diário da Fonte é assim: você lê antes aqui o que será assunto daqui a um bom tempo. Mas isso não tem valor. O que vale é aparecer nos grandes veículos. Pois acho que o DF é, a seu jeito, grande.

TRISTE LINGUAGEM

Deputado foi contra, então ele é uma das “viúvas” da CPMF. Dois marmanjos não se entendem, é claro que entre os dois pintou a maior “saia justa”. Quando um tubarão de certo partido se entende com o tubarão de outro, o que houve foi “casamento”. Enfim a CPI foi aprovada, aconteceu, portanto, um “parto”. E continuam os “não é para menos (hoje ouvi um, no noticiário matinal), só para ter uma idéia, não pensou duas vezes, afinal, é isso mesmo” e por aí vai. E dê-lhe link no shopping. Agora é a Páscoa que se aproxima. E quando entrevistam o dono de uma feira? Nossa palavra é mercado, diz ele. Que coisa triste. Mercado ser a “nossa palavra” é tristeza demais. É a infinita tristeza cultural do Brasil.

O mercado é quem determina quando certas inverdades históricas devem ser corrigidas. Um eminente colunista econômico começou assim sua catilinária contra o Banco Central: "É blefe!" Ele tentava acusar o presidente do BC de algo que era apenas jogo de cena. No parágrafo seguinte, repetia a mesma coisa dita pela autoridade, só que com outras palavras. Ou seja, seu "é blefe!" era blefe. Sugeria independência de opinião. Enquanto acharem normal a ditadura econômica, são todos culpados. É blefe! Mas isso só será denunciado daqui a alguns anos. "Era blefe nosso é blefe", dirão.

RETORNO - Imagem de hoje: o pai da matéria com o aproveitador sorridente. Um fez, outro levou a fama.

26 de fevereiro de 2008

OS FRASISTAS


Nei Duclós (*)

A frase inesquecível é o narcisismo da linguagem. É quando a obra se olha no espelho e diz: bela estampa, você tem futuro. Alguns autores se aprofundaram nessa arte, que é a garantia da permanência. Você pode esquecer romances e peças de Oscar Wilde, mas ele sempre será lembrado como alguém que levava seu diário para viagem, pois assim teria algo para ler. Raymond Chandler sabia que seus romances policiais não dispunham de prestígio (o que foi contrariado pelo tempo) e vingava-se com tiradas primorosas. A melhor é sobre alguém que ficara famoso exatamente pelas frases curtas.

Seu detetive Philipe Marlowe, de “Adeus, minha adorada”, apelidou certo policial corrupto de Hemingway. A autoridade, claro, não entendeu e pediu satisfações. É alguém que repete sempre a mesma coisa até que todo mundo passa a acreditar que tenha algum valor, disse o escritor, pela voz do personagem. Mas a estocada no sujeito considerado o maior entre os pares nem chega perto de outras jóias, o que torna o convívio com as histórias de Chandler um permanente levantar de cabeça para as gargalhadas.

Frente a um gangster gigante, o detetive define sua inferioridade física dizendo que ambos se puseram a rosnar, mas o adversário rosnava melhor. Ao arriscar uma piada na delegacia, o inspetor avisou que iria rir dela no seu dia de folga. Com pena de sua vítima, Marlowe colocou o uísque a uma altura que ela pudesse alcançar, se não estivesse de mãos amarradas. Nesse ambiente, gente de classe só rouba grandes quantias. Possuem carros estrangeiros que praticamente andam sozinhos, mas é prudente colocar as mãos no volante para manter as aparências.

Chandler não queria apenas nos divertir. Ele era um frasista compulsivo. Conheci vários em diferentes cidades. Um frasista primoroso é Mino Carta, pintor, jornalista e romancista, com quem trabalhei seis longos anos na década de 80. Tudo no Brasil é mistura de QI baixo com sacanagem, disse ele uma vez, num rompante injusto, mas brilhante. Aliás, a arte de criar frases inesquecíveis é, como todas as outras, um exercício de liberdade. Precisamos deixar de ser tão brasileiros, dizia, quando cometíamos uma das gafes comuns que fazem parte do acervo nacional. Fulano sempre concorda com quem estiver mais perto dele, era outra lança certeira com que brindava a falsidade.

Não é justo passar de frases escritas para outras, orais, ainda mais de autoria de alguém que escreveu tanto. Mas também existe graça na lembrança, e não apenas na leitura. Por isso costumo resgatar a frase imortal do carola gigantesco, calvo, de roupas apertadas, manco, que puxava as procissões com sua voz de barítono. A gurizada, escolada na mais absoluta crueldade, implicava com o santo, principalmente em eventos importantes, em que havia a chance de arrancar o riso solto da multidão.

No momento solene em que o enorme devoto, de sobrenome Lapitz, chegava em frente à Catedral, um garoto se postou em sua frente gritando: “Cala a boca, véio Lápis”. Não tão incomodado com a corruptela de seu sobrenome húngaro, a qual já estava acostumado, e mais afeito a defender a fé que exibia com tanto fervor, o homem rosnou, brandindo o comprido crucifixo de prata que carregava com as duas mãos:
- Sai da frente, moleque, senão te dou um Cristaço!

Vai ver as melhores frases são as que saem sem querer, revelando o que temos de mais contundente.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Raymond Chandler.

OS FRASISTAS

Nei Duclós

A frase inesquecível é o narcisismo da linguagem. É quando a obra se olha no espelho e diz: bela estampa, você tem futuro. Alguns autores se aprofundaram nessa arte, que é a garantia da permanência. Você pode esquecer romances e peças de Oscar Wilde, mas ele sempre será lembrado como alguém que levava seu diário para viagem, pois assim teria algo para ler. Raymond Chandler sabia que seus romances policiais não dispunham de prestígio (o que foi contrariado pelo tempo) e vingava-se com tiradas primorosas. A melhor é sobre alguém que ficara famoso exatamente pelas frases curtas.

Seu detetive Philipe Marlowe, de “Adeus, minha adorada”, apelidou certo policial corrupto de Hemingway. A autoridade, claro, não entendeu e pediu satisfações. É alguém que repete sempre a mesma coisa até que todo mundo passa a acreditar que tenha algum valor, disse o escritor, pela voz do personagem. Mas a estocada no sujeito considerado o maior entre os pares nem chega perto de outras jóias, o que torna o convívio com as histórias de Chandler um permanente levantar de cabeça para as gargalhadas.

Frente a um gangster gigante, o detetive define sua inferioridade física dizendo que ambos se puseram a rosnar, mas o adversário rosnava melhor. Ao arriscar uma piada na delegacia, o inspetor avisou que iria rir dela no seu dia de folga. Com pena de sua vítima, Marlowe colocou o uísque a uma altura que ela pudesse alcançar, se não estivesse de mãos amarradas. Nesse ambiente, gente de classe só rouba grandes quantias. Possuem carros estrangeiros que praticamente andam sozinhos, mas é prudente colocar as mãos no volante para manter as aparências.

Chandler não queria apenas nos divertir. Ele era um frasista compulsivo. Conheci vários em diferentes cidades. Um frasista primoroso é Mino Carta, pintor, jornalista e romancista, com quem trabalhei seis longos anos na década de 80. Tudo no Brasil é mistura de QI baixo com sacanagem, disse ele uma vez, num rompante injusto, mas brilhante. Aliás, a arte de criar frases inesquecíveis é, como todas as outras, um exercício de liberdade. Precisamos deixar de ser tão brasileiros, dizia, quando cometíamos uma das gafes comuns que fazem parte do acervo nacional. Fulano sempre concorda com quem estiver mais perto dele, era outra lança certeira com que brindava a falsidade.

Não é justo passar de frases escritas para outras, orais, ainda mais de autoria de alguém que escreveu tanto. Mas também existe graça na lembrança, e não apenas na leitura. Por isso costumo resgatar a frase imortal do carola gigantesco, calvo, de roupas apertadas, manco, que puxava as procissões com sua voz de barítono. A gurizada, escolada na mais absoluta crueldade, implicava com o santo, principalmente em eventos importantes, em que havia a chance de arrancar o riso solto da multidão.

No momento solene em que o enorme devoto, de sobrenome Lapitz, chegava em frente à Catedral, um garoto se postou em sua frente gritando: “Cala a boca, véio Lápis”. Não tão incomodado com a corruptela de seu sobrenome húngaro, a qual já estava acostumado, e mais afeito a defender a fé que exibia com tanto fervor, o homem rosnou, brandindo o comprido crucifixo de prata que carregava com as duas mãos:
- Sai da frente, moleque, senão te dou um Cristaço!

Vai ver as melhores frases são as que saem sem querer, revelando o que temos de mais contundente.


25 de fevereiro de 2008

QUE UM DE NÓS SOBREVIVA



Nei Duclós

Que um de nós sobreviva
e emudeça

Para esse alguém e suas mãos
estamos preparando nossa insônia

Que por fora ele seja de aço
e por dentro de estrelas
Que ninguém desconfie do seu destino
De maneira alguma
sorria
(para isso, se for preciso
mastigue infinitamente
meteoros e planetas)

Pois esse que eu chamo companheiro
deixará que os anjos revistem seus bolsos
e aprendam o que se passou conosco

RETORNO - Para este poema do meu livro Outubro (1975), uma foto de Irene Schmidt, intitulada Menina.

22 de fevereiro de 2008

DIOGO E DIANA: ENFIM, UMA RESENHA


Resenha assinada por Renato Pompeu e publicada nesta sexta-feira, dia 22 de fevereiro de 2008, no suplemento DC Cultura do jornal Diário do Comércio, da Associação Comercial de São Paulo.


Um “romance juvenil” que mais parece infantil

Renato Pompeu

O bem conhecido escritor e cineasta gaúcho Tabajara Ruas e o escritor, poeta e jornalista Nei Duclós, radicado em Florianópolis, se associaram para escrever, a quatro mãos, uma série do que apresentam como “romances juvenis”, sob o título geral de Diogo & Diana, cujo primeiro volume, Diogo & Diana em: Meu vizinho tem um rottweiler (e jura que ele é manso, foi editado pela Galera-Record.

Diogo tem 14 anos e Diana tem 13, mas o livro parece muito mais escrito para crianças do que para jovens adolescentes. São vizinhos em Florianópolis e são dotados de poderes mágicos, como o de enxergar bruxas onde ninguém mais vê nada. Envolvem-se em aventuras contra uma bruxa que mata crianças. O romance respira a magia da cultura popular catarinense. Como escritores talentosos que são, Ruas e Duclós conseguem dar vida real a personagens folclóricos, como a assombração da mulher nua que anda a cavalo pelas praias, que se misturam à trama com cantoras de rock e praticantes de surfe. Sucedem-se os episódios de magia e de bruxaria, tornados verossímeis pela escrita ágil e vivaz.

As paisagens de Florianópolis, da Ilha de Santa Catarina e do litoral e dos mares catarinenses talvez não tenham ainda, na literatura, alcançado tão plenamente em texto descrições tão formosas quanto a desse livro “juvenil”, dignas das belezas naturais que evocam.

Possivelmente, a série tenha sido inspirada pelo êxito do bruxinho inglês Harry Potter. Mas uma pista adicional sobre as intenções dos autores nos é dada pela apresentação, na orelha, de Tânia Piacentini, doutora em literatura: é “o imaginário tradicional da gente da ilha o ponto de largada para que a história ganhe força, fugindo dos clichês estrangeiros de tantas narrativas dirigidas a jovens leitores”.

Ruas e Duclós, assim, parecem ter tido a ambição de escrever uma história nacional e popular, mas não faltam o que seriam “clichês estrangeiros”, como o fato de a heroína Diana e uma proporção grande de outros personagens serem louras de olhos azuis, ou tenham “olhos cristalinos”, enquanto a morenice e a negritude são muito menos freqüentes na história do que na realidade brasileira.

A beleza do fraseado, das ações mágicas descritas, das viagens em velhas baleeiras, da descoberta de antigos galeões naufragados, dos passeios de bicicleta pelas ruas irregulares no traçado e na altura da capital catarinense, das tempestades de areia, dos redemoinhos de vento, se vê algo prejudicada pela citação de astros fugazes do rock e pelo uso de termos técnicos de surfe, que evocam situações e estéticas inapreensíveis por boa parte do público a que o livro se destina. Além do que essas citações do rock logo podem se tornar obsoletas, tornando o livro um produto não durável.

Mas o livro vale pelo texto lindamente ritmado que torna encarnações vivas as tradições do folclore catarinense, enriquecidas também pela inventividade própria dos autores. Nesse sentido, ele é de leitura agradável para crianças e também para adultos, como acontece com os livros infantis de Monteiro Lobato ou de Ruth Rocha. Só não parece adequado como “romance juvenil”, pois os jovens da mesma idade que seus personagens principais, ao que parecem, ficarão impacientes com a ingenuidade e o irrealismo das peripécias.

Difícil será manter o fôlego do texto e o interesse nas aventuras de Diogo e Diana nos volumes a seguir. Os autores, no entanto, parecem à altura dessa tarefa. É importante salientar que, cheio de ação e de milagres, o livro parece escrito com miras à adaptação cinematográfica ou televisiva.

Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio "O mundo como obra de arte criada pelo Brasil", Editora Casa Amarela.

RETORNO - Renato teve a gentileza de me enviar a resenha com antecedência e fez um pequeno reparo a partir do nosso debate sobre o texto. Fico gratificado pela atenção dedicada ao livro, por parte de um dos grandes escritores brasileiros contemporâneos e jornalista de primeríssimo time. Renato aborda dialeticamente a aventura, apontando mais qualidades do que defeitos. Claro que continuo achando que o livro é mais para o público juvenil e tenho tido prova disso pelos depoimentos que me enviam, pelo destaque que começa a ter no Orkut, pelo contato direto com leitores adolescentes etc. Mas acaba sendo para todas as idades, inclusive a infantil (muita gente grande gostou). Quanto às gírias, não correm o risco de datarem o livro, pois todas elas estão bem amarradas pela narrativa em língua culta. E o que os amigos do Diário da Fonte acharam da resenha? Cartas para a redação. E um aviso para o autor da resenha: o segundo livro está bala, e às vezes, bastante assustador. Há fôlego para muita ação. Aguardem.

SALGUEIRO MAIA NO FRONT


Vejo uma raridade, Capitães de Abril, de Maria de Medeiros. Li também a longa entrevista do capitão Salgueiro Maia, personagem-protagonista do filme, para a revista portuguesa Fatos e Fotos, oito dias depois dos eventos de 25 de abril de 1974, que derrubaram a ditadura salazarista na sua sobrevida, quando tentara se consolidar depois da morte do ditador. O que vi na tela está completamente sintonizado com a narrativa do capitão. Os elementos de ficção inseridos ajudam a esclarecer os acontecimentos, o que é difícil de fazer, pois a transposição costuma sufocar a História.

A diretora se saiu muito bem, chegou a ganhar alguns prêmios, mas o filme sumiu, apesar de ter sido feito em 1999, lançado em 2.000 e até 2003 ainda concorrer a prêmios. Ou seja, é de hoje de manhã e já foi sepultado. Talvez porque coloque em evidência o oficial que viabilizou a derrubada de Marcelo Caetano, arriscando a vida, e todo o seu prestígio. Fez tudo certo, já que na chamada Revolução dos Cravos quase não houve derramamento de sangue.

Na entrevista, ficamos sabendo que a insatisfação da tropa foi o elemento desencadeador da revolta. As causas são conhecidas: a longa guerra colonial (desde 1961) era declarada injusta e tornava os soldados “assassinos profissionais”, como se costumava dizer; e, pior, a injustiça na política de promoções, já que os que voltavam da África chegavam cheio de regalias, causando obstrução na ascensão profissional dentro das Forças Armadas. Mexer com gente que tem licença para portar metralhadoras e dirigir tanques é um perigo, mas a ditadura confiava nos seus quadros legalistas dentro dos quartéis.

Baseada na tradição, no imobilismo, na dura repressão, a ditadura fazia e acontecia, enquanto a sociedade acumulava frustrações e dores. O que foi feito da redemocratização logo a seguir são outros 500. Salgueiro Maia não exerceu poder nenhum, recolheu-se e acabou morrendo de câncer em 1992. Há um monumento à sua homenagem, construído pelo povo de Lisboa, que acompanhou os eventos misturando-se aos soldados. Maia é chamado de herói incômodo, pois representa o ideal e a coragem de assumir riscos.

No filme, é chocante a cena em que o general Spíndola, que assume o poder, trata com desprezo o capitão que derrubou a ditadura. Mas Spíndola já fazia parte do Movimento das Forças Armadas, pelo menos indiretamente, pois seu livro “Portugal e o futuro”, segundo Maia, tinha sido bem recebido pelos insurgentes.Na História tudo é diferente, mas podemos fazer algumas comparações com 1930. Os jovens oficiais também lideraram um movimento contra a ditadura da República Velha e acabaram derrubando o poder.

Não havia um Spíndola em 30, mas Getúlio Vargas, o candidato derrotado nas eleições presidenciais em 1929. O poder caiu na mão dos políticos novamente, acontecendo o mesmo em 1937, quando, desta vez os generais, deram o golpe com o apoio de Getúlio. Aconteceu de novo em 1945, com os generais derrubando Getúlio. Em 1955, quando o Marechal Lott impediu um golpe de estado contra o presidente eleito, Juscelino Kubistcheck. Em 1961, quando os generais foram derrotados pelo movimento da Legalidade. E finalmente em 1964, quando os generais foram os instrumentos da direita para descer de vez a ditadura no país.

A partir de 1985, não se precisava mais de militares para impor ditaduras. Mas o importante é o papel das Forças Armadas nos momentos decisivos das nações. É um tema que merece estudo aprofundado, especialmente o da composição dos mitos, que infletem diretamente no debate político. Mitologia e militarismo, eis um assunto candente.

RETORNO - Imagem de hoje: Salgueiro Maia, na hora da onça beber água.

21 de fevereiro de 2008

OS ARROGANTES LAMBEM O OSSO


Já que pegaram pesado, vamos devolver na mesma moeda. Talvez nunca tenha havido um tapa tão forte e violento como a vitória do cinema brasileiro em Berlim. As reações rasteiras diante da antológica premiação foi a prova de que odiamos quem nos enxerga de frente, que nos propõe maturidade do olhar, que nos obriga a ver o grande buraco onde nos metemos. E esse buraco não é a miséria, a violência, o esgarçamento do tecido social, a guerra civil por toda parte. O mais grave é a ilusão de que somos essas grandes figuras que projetamos, essa auto-imagem de produtores de pensamento, essa pose que costuma costurar os medíocres.

Pois é nessa ilusão que o grande filme de José Padilha acerta em cheio, fazendo o maior estrago. Não se trata de achincalhar Foucault, mas de denunciar o uso de Foucault para a conivência e a covardia. Não se trata de incensar a tortura, mas ver na tortura o instrumento do convívio sinistro da ex-cidadania. Não se trata de heroísmo, mas de medo. De repressão, de ditadura, de horror. E da ação gerada pelo pipocar das balas achadas e perdidas.

Grandes personalidades do cinema se manifestaram a favor do filme Tropa de Elite. Gente da pesada, criadores de grandes obras. É o contraponto a quem se acha jovem e revolucionário acusando o grande vencedor do Urso de Ouro de Berlim, e seus admiradores, de fascistas.

Daqui a 40 anos, a gente vai assistir ao filme. Já a "Variety" [revista norte-americana que fez uma das mais ácidas críticas a "Tropa de Elite'] já está hoje forrando o chão de algum pintor que está derrubando tinta em cima dela. Não dura dois dias." Fernando Meirelles.

“O cinema nacional mobilizou a sociedade para uma discussão muito oportuna sobre segurança pública. É espetacular um filme ter esse poder de mobilização”. Sergio Rezende.

"É um filme muito forte, muito importante. Ajuda-nos a compreender a sociedade brasileira, e não apenas esta. Corrupção e violência são pragas que avançam em todo mundo. Com as especificidades de cada lugar." Costa-Gravas.

"Estou contentíssimo. É uma vitória do Padilha, da equipe dele, e também do cinema nacional. 'Tropa' é um filme polêmico, mas de grande qualidade". Cacá Diegues.

ESCUTEM O CARA

“Eu queria explicar como o estado corrompe os policiais e os incita à violência. Creio que uma grande maioria de brasileiros compreende o fundo do filme. O que vemos acontece de verdade no Brasil. É triste, mas é um fato.” José Padilha.

RETORNO - Ah, teve o Babenco dizendo que o filme (visto por 12 milhões de pessoas), "não pára em pé". Babenco foi jurado na comissão que eliminou Padilha do Oscar e escolheu o filme de Cao Hamburger, que nem foi selecionado. Decidiu sentado, naturalmente.

19 de fevereiro de 2008

DISCUTIR A RELAÇÃO


Nei Duclós (*)

Vivemos numa era de transparências e descobrimos que tudo é inventado. Começa pelo nome, que empresta realidade a criaturas nascidas no zero absoluto. Há uma convicção de que somos evoluídos por apertar botões e superar os Jetsons, aquelas personagens futuristas que pertencem ao passado. Mas temos de aprender tudo, principalmente a conviver com os contemporâneos.

É fácil insurgir-se contra o Estado, patrões, colegas. É mole emocionar-se com músicas, livros, quadros. É tranqüilo manter amizades. É duro, mas gratificante, criar filhos e obedecer aos pais. O que não parece humano é ter argumentos adequados para chegar perto do entendimento numa relação amorosa. Não por haver diferenças, pois o que existe no mundo é desigualdade. Mas porque, por motivos misteriosos, nunca se chega ao ponto. Nesse ringue, quando mais se precisa das palavras, mais elas nos faltam. Ou, se são usadas no excesso, apenas confirmam a intensidade do enigma.

É preciso contrariar a velha percepção de que tudo se resolve na cama. Os lençóis não definem o debate das relações. Podem ser decisivos para manter o namoro, noivado, casamento, mas não para a conversa a dois, que para ter conseqüência merece ambiente menos comprometido. Como estamos num tempo em que sensações, cheiros, sentimentos, idéias viraram mercadoria, resta muito pouco para que o amor verdadeiro passe a limpo uma sintonia que é a base da vida adulta.

Apesar de estarmos completamente contaminados pelo mercado, há um nicho que resiste, o da razão. Pois o que temos exposto na vitrine das modernidades não é o exercício racional, mas sua negação. Quando autores, políticos, artistas saem a campo para defender o que pensam, estão no fundo tomando partido, se engajando em gavetas usadas estrategicamente por toda espécie de poder. É difícil encontrar espíritos livres, pelos menos publicamente. Na intimidade, a liberdade das almas se manifesta quando se discute a relação.

Não abordo aqui a briga pelos bens. Apenas me refiro à construção verbal de uma lógica que abarque o oceano, aquele dedal que carrega em vão gotas do mar para um lugar seco, como ensinava uma velha parábola. É o embate de mentes momentaneamente jogadas fora da arena global, já que a crise não existe na publicidade, e é tratada, na literatura de auto-ajuda, como insumo para a debilidade mental.

Espíritos livres, de pessoas adultas que se amam, isolam o tempo para conversar sobre o desgaste do amor que parecia tão profundo. Quando um produto cultural chega perto dessa situação, convencendo as pessoas de que está revelando algo real, há o estouro. Os best-sellers são a matéria-prima de mais uma ilusão, como se livro ou filme pudessem lançar luzes sobre esse momento limite, em que não dispomos do script elaborado e contamos apenas com o uso elementar do verbo escasso, enquanto se derrama sobre nós a avalanche das coisas irreversíveis.

O casal que resolve fazer o balanço do casamento, namoro, noivado, é como duas pessoas que se encontram no abismo, trafegando em direção contrária. Alguém toca nas nuvens, outro mergulha fundo. Ou ambos sobem, quando desistem de entender e decidem continuar. Ou caem, mas cada um para um lado. As estatísticas tendem a mostrar a queda, mas isso pode ser mais uma evidência inventada. Já que tudo não passa de ficção, temos o direito de consagrar ao amor o que nos resta de realidade.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 19 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Bogart e Bergman em Casablanca, na cena mais dilacerada da história do cinema.

18 de fevereiro de 2008

EDMUNDO, A LA RAYMOND CHANDLER


Edmundo é tipo de cara que pode assassinar os mascotes se eles atrapalharem sua entrada triunfal no gramado envergando a camisa 10 do Vasco. Por sorte, os mascotes foram arrancados do seu pêlo antes que puxasse a arma. Mas a tentativa de interromper-lhe a glória serviu para despertar seus piores instintos, se é que ele possui instintos melhores. Num clássico como o de ontem, contra o Flamengo, que valia vaga para final da Taça Guanabara, todo mundo se põe a rosnar, mas Edmundo rosna melhor.

Quando deu um chute criminoso para quebrar o braço do adversário, seus olhos transmitiam a profundidade líquida de um famoso poço medieval. Alguém poderia atirar uma moeda nele e ouvir o barulho da água só depois de algumas horas. Acompanhava esse olhar sem fundo uma boca semi-aberta, que parecia sorver o ar que lhe faltava, mas era apenas a catatonia do gosto de sal e ferrugem quando faz jorrar o sangue. A cena do pontapé no osso alheio não era grande coisa. Tinha um pouco menos impacto do que uma blitz na favela desencadeada apenas para disseminar balas perdidas.

Jamais peça a bola para Edmundo, ele vai rir dessa piada quando estiver de folga. Gosta de carregá-la embaixo do braço e partir para o campo adversário com a certeza de que não será preso se capotar sua Land Rover três vezes. É chegado em carrões, tão possantes que nem precisam de motorista, basta colocar a mão no volante para manter as aparências. O cheiro da transgressão é tão forte que ele quase pode beber. Joga duro, mas finge que é puro talento. É como se fumasse cachimbo, o típico gesto de quem desiste de pensar fazendo pose de pensador. Costuma dar certo. Sempre tem torcedor que sente saudade quando Edmundo demolia adversários depois de alguns sopapos, aplicados pelo simples fato de que ousaram se colocar à sua frente.

Seu ideal de vida é ficar frente a frente ao goleiro na hora do pênalty para justificar sua fama. Mas o destino é perverso com Edmundo e lhe rouba o sonho. Ele toca no canto com um chute tão pálido que parece ser de seda quando rasga só de alguém tentar acenar para ele. Isso reverte totalmente o quadro pintado para o herói. Não pode mais manter a esperança de os torcedores vê-lo jogar protegido por guarda-costas, que medem um metro e noventa oito e usam casacos grossos com botões do tamanho de bolas de golfe. Desperdiçou mais essa chance, o que já faz parte de sua natureza.

O que fará Edmundo na sua aposentadoria, que não chega nunca? Não poderá ser treinador, pois o futebol não é, como imagina, um jogo solo, de apenas uma pessoa em campo, ele mesmo. Não poderá ser cartola, daria muito na vista. Nem servirá como embaixador do futebol brasileiro, como Pelé ou Romário, pois não fez mil gols nem foi campeão do mundo. Também é improvável que monte uma casa de ferragens, como muitos craques do passado, já que poderia usar as serras, martelos, grampos, para realizar suas fantasias.

Uma boa opção é virar guarda-costa. Já tem o principal, que é a cara de mau. Ajuda o currículo, que acumula um prontuário invejável. Poderia assim extravasar seus instintos, sempre à flor da pele. Chutaria costelas, o que é do seu estilo. E poderia até dar autógrafos, desde que não pedissem para desenvolver uma dedicatória. Continuaria assim a grande estrela que é.

De vez em quando seria convidado para relembrar os bons tempos. Vai ser difícil convencê-lo a não levar o soco inglês que carrega para qualquer eventualidade. E lembrá-lo que não deve descarregar o revólver na bola. Ela serve para outra coisa, dirão, e Edmundo vai encarar o interlocutor com aquele olhar aquoso, que devolve moedas como se fossem balas, no dobro da velocidade com que foram jogadas.

RETORNO - É isso que dá ler o clássico “Adeus, minha adorada” (L&PM Pocket), de Raymond Chandler com a televisão ligada na Globo no domingo à tarde. As frases de Chandler cabem no perfil de Edmundo com a mesma crueza com que Philippe Marlowe enfrenta um caso intrincado. A imagem é da versão de 1975 de "Farewell my lovely", com Charlotte Rampling e Robert Mitchum.

17 de fevereiro de 2008

O URSO RÓI O OSSO


Já tinha escrito sobre Tropa de Elite aqui no Diário da Fonte (texto "Osso duro de roer"), portanto posso comemorar. O filme é a denúncia e não a apologia da tortura. Ganhou de todo mundo em Berlim e José Padilha recebeu o Urso de Ouro das mãos do insuspeito Costa-Gravas, o cineasta mais politicamente correto do mundo. Enquanto isso, Cao Hamburger e os pais que saíram de férias nem sequer passaram na peneira do Oscar. Padilha, pobretão de toca na cabeça, foi rejeitado pelo bem nascido Hamburger aqui no Brasil. Quiseram ganhar Oscar com garoto judeu de classe média que sofre com a ditadura. A ditadura continua. Padilha prova isso, enquanto Hamburger, apesar de ter feito uma boa refilmagem do argentino Valentin, quer nos fazer acreditar que a tirania pertence ao passado.

É suspeito que Tropa de Elite tenha enfrentado problemas técnicos no festival, que é na Alemanha e ninguém é mais organizado do que a alemãozada. Como que a cópia só tinha dublagem em português com legendas em alemão? Como então que os jurados tiveram de ver o filme escutando a dublagem, improvisada na hora? A verdade é que ninguém apostava nesse cavalo. É a velha sina do que fazemos de importante: sempre enfrenta a má vontade aqui dentro e precisa derrubar um monte de gente importante para fazer valer seu direito. Foi assim com O Pagador de Promessas. Anselmo Duarte venceu os maiores cineastas da época, que tinham filmes de arrasar quarteirão. Pois foi lá e ganhou e por isso foi execrado por aqui.

Não se trata de lançar mão da velha história de que o Brasil odeia o sucesso. O Brasil ama o sucesso, quem quer manipular nossas vitórias é que mete os pés pelas mãos. E quem quer manipular nossas vitórias, quem diz para nos emocionar com isso ou aquilo? Lembram do massacre que foi o lançamento da porcaria Os dois filhos de Francisco, que, selecionado aqui, também não passou na peneira do Oscar? Ontem, o Jornal Nacional tratou a estupenda vitória de Padilha friamente. Como na Band, entrevistaram atores. Ninguém lembrou de entrevistar os autores do livro (também comentado aqui no Diário da Fonte) em que se baseou o filme. Luiz Eduardo Soares está dando sopa em Nova Iguaçu, assim como André Batista e Rodrigo Pimentel poderiam muito bem comentar a vitória.

Aguardei tudo isso ontem de zap na mão e não consegui ver nada. Vi apenas o Padilha de toca, meio abaixado com o peso da nova responsabilidade, sussurrar um muito obrigado e elogiar Costa-Gravas. Mas a noite era dele, não do cineasta grego. O prêmio é teu, cara, é tu o brasileiro vitorioso com uma obra porrada, que galvanizou a opinião pública, que extrapolou os limites da mídia oficial, que foi passado de mão em mão pela população empolgada de novo com o cinema nacional. Tu é o cara, Padilha, que levanta o troféu para os aplausos do mundo.

É claro que este sucesso está sendo manipulado, mas não porque o filme se presta a isso, mas porque a bandidagem na política ou fora dela sempre encontra um álibi perfeito para repassar seus recados. O filme é claro e explícito: a corrupção policial é fruto da corrupção política; a violência é a saída encontrada pela corporação pressionada pelas circunstâncias da corrupção; essa violência é uma cruz que os policiais honestos carregam e um passaporte para a completa destruição da auto-estima de toda a nação; o consumo de drogas é a conivência com o crime; a análise dos fatos tem que passar ao largo das frescuradas da pseudo análise dos pseudo-acadêmicos e se aproximar dessa guerra civil disseminada por todo o tecido social. Trata-se de denúncia e alerta e não apologia do crime. Ou será que Costa-Gravas iria colocar todo seu prestígio a perder se não soubesse o que estava fazendo, outorgando o prêmio para quem de fato merece?

RETORNO - Trecho do artigo publicado aqui dia 30 de outubro de 2007: "Tropa de Elite é sobre uma guerra coletiva, longe daqui (no cinema), aqui mesmo (ao nosso redor), para usar o título de uma peça de Antônio Bivar. É um filme que sobra. Não cabe em ataques ou defesas. É tremendamente dialético, inteligente até o osso, brutal até a exaustão, imoral, impróprio, desajustado. E super bem feito, com câmara em movimento sem frescuragens, apresentação didática dos problemas, definição antológica dos personagens (o que é aquela oficina de catraias policiais?!). É um filme de ação, sobre o Brasil que enxergamos só em parte. Agora podemos ver de frente e no final levar aquele tironaço no meio das fuças”."

CERRO


Nei Duclós

Estou só
Como no pampa
o cerro
Como quero-quero
aos berros

O silêncio é o ouro
do sereno
Fiquei diante de ti
como um espelho

Campo é quando
te enxergo
flor que raia
pelo avesso

Estou só
Como no vento
a espera
Brota, primavera
no deserto

RETRORNO - 1. Mais um poema do meu livro "Partimos de Manhã". 2. Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli.

15 de fevereiro de 2008

FRASES QUE DÃO URTICÁRIA


Olhar sampacu, de perfil, para o infinito, baforadas sob lentes grossas, eis o pseudo que se acha o próprio Sartre e adora algumas frases feitas, todas elas execráveis, mas que são identificadas como o supra-sumo da testosterona. Como tem muita gente que acredita em formador de opinião, milhares de clones imitam os mesmos gestos e repetem as mesmas frases, como se fossem a quintessência da sacada cheia de veneno e charme. Como não cansam de repetir, resolvi entregar. São elas:

O MAIS BELO ANIMAL DO MUNDO

Frase atribuída a Ernst Hemingway, que comentava Ava Gardner. Apesar do mau gosto da frase, parece que acham o máximo. A resposta a esse tipo de boutade é: o mais belo animal do mundo é o ursinho de pelúcia que você guarda na caixa de papelão escondido da esposa, seu cretino de merda. Deixe fora disso a Ava Gardner, que pastou na mãos de machões execráveis (trocava demais de homem, sinal que eles eram ruins de cama).

NÃO ME FALA AO PAU

As coisas (textos, filmes, livros, jornais, quadros) falam ao falo, segundo os adeptos dessa imundície frasística. Ou seja, isso não toca o coraçãozinho assustado do sujeito, mas como ele não quer dar o braço a torcer, então disfarça dizendo que as coisas são analisadas segundo os parâmetros da sua pretensa paudurescência. Significa também que só existe uma forma de se sensibilizar com algo, e isso está abaixo da cintura.

ESCREVER A QUATRO PATAS

Uma parceria de texto é encarada assim como um exercício animal, pois a quatro mãos seria assunto para pianistas. Várias vezes flagrei essa excrescência em redações que sumiram no tempo, felizmente. Quem dizia isso eram os veteranos. Como me aproximo dos cem anos de idade, os caras devem ter uns 200 hoje. Mas ainda a frase me incomoda.

AQUI SOMOS UMA FAMÍLIA

Quanto mais destroem o reduto familiar, enchendo o saco dos noivos com gracinhas, dos cônjuges com cobranças (mas ela trabalha? mas ele trabalha), das crianças com advertências (ih, que malcriado, mas que cabelinho ruim); quanto mais reduzem os espaços dos apartamentos, arrocham os salários, infernizam as condições de vida; mais gostam de dizer, “mas aqui no trabalho somos uma família”. Família é outra coisa e mora em casa, não no escritório. Uma corruptela disso é o “a bem dizer aqui é minha casa”. É quando os jogadores de futebol, ou os torcedores, falam dos estádios dos seus times. A bem dizer um bom cacete.

CRISE EM CHINÊS É OPORTUNIDADE

Também já comentei esse troço, mas como agora decidi fazer textos em pílulas, não pode faltar. É que não cansam de usar essa, por que será? Todo mundo acredita que a merda que acontece significa algo bom, e não algo ruim? É a mesma história do sonho que não morreu, o ano que não acabou, Elvis vive (o cara está morto, pelo amor de Deus). É a incapacidade de lidar com as perdas. Ou com as “percas”, como costumam dizer em público. Ouvi essa no velório de um jornalista. “Foi uma perca muito grande”. Não copidescam nem nos funerais. Já pensou quando alguém importante morrer? “Essa perca desencadeia uma crise, mas vamos encarar como oportunidade”, dirão os herdeiros.

RETORNO - Imagem de Hoje: Ava Gardner, grande "perca".

A REITERAÇÃO DA AMÉRICA




Todos os filmes americanos são sobre a América. É o que acontece com alguns lançamentos, como American Gangster, de Ridley Scott, com Russel Crowell e Denzel Washington, que defende o papel histórico do negro na formação das grandes máfias, antes restrito no imaginário cinematográfico às etnias brancas. Ou de Instinto Secreto, com Kevin Kostner e William Hurt, em que o principal objetivo da nação imperial, matar, aparece como vício incurável e coloca a questão como uma divisão interna da cidadania, uma bem comportada e outra assassina, com grandes chances de se reproduzir geneticamente pelos séculos afora. Ou ainda de O Vidente, com Nicolas Cage e Jéssica Biel, em que um argumento policial clássico – o cara com poderes especiais que disfarça seu talento em shows de mágica – é distorcido pela necessidade de o Estado americano interferir no cinema impondo o tema terrorismo de ameaça nuclear, que acaba colocando o filme a perder.

O único que presta é sem dúvida American Gangster (o título em português, claro, erra, pois fica apenas O gângster, tirando assim o motivo principal da trama, que é focar a presença de um legítimo americano no território que pertencia apenas a italianos e irlandeses). Impressionante narrativa sobre os anos 70, resgata o episódio candente de o tráfico pesado de heroína ser feito usando o aparato militar que invadia o Vietnã. O Império enfim denunciado? Nada disso. No momento em que o avião militar transporta a droga, a América migra para o policial incorruptível. No momento em que este recusa ficar com milhão de dólares achados num carro de traficantes, a América foge dos policiais corruptos, que se vendiam por um punhado de moedas. E, paradoxalmente, no momento em que o mega-traficante negro convoca a família para seu negócio, a América se revela na inclusão das minorias no grand monde da liquidez imperial.

Esse jogo de gato e rato que procura enquadrar a denúncia nos limites do jogo democrático nada tem a ver com a oposição, o confronto que fazem cineastas de vanguarda como Godard, que desconstrói o mito americano ao negar-lhe originalidade cultural e colocá-lo sob a bandeira da vampirização de todas as vivências fora de suas fronteiras. Ridley Scott procura atingir a essência da América com seu filme de quase três horas de duração, mas não foge ao círculo de giz que confina as cabeças dos cineastas à existência no território imperial sem poder insurgir-se de fato, sob pena de traição. A verdade é que essa insurgência não existe, pois as pessoas estão convencidas que na guerra é preciso tomar partido.

É o que diz um dos produtores de O Vidente no making off. Existe uma luta entre dois lados, você precisa ficar do lado certo, disse ele. E o lado certo é evitar que uma bomba nuclear seja detonada na Califórnia. Em redor dessa barbaridade circulam vários desperdícios. O de Cage, que faz mais um blockbuster, sendo ele um ator esforçado que poderia render melhor; o de Jéssica Biel, linda, que acaba virando joguete nas mãos de terroristas internacionais, o que é um destino trágico para a doçura de seu personagem, que poderia crescer se a trama ficasse confinada ao argumento original; e de recursos, pois se gasta os tubos para fazer um filme que acaba sendo uma grande porcaria.

O que salva Instinto Secreto do fracasso absoluto é a presença de William Hurt, esse ator minimalista numa galeria de excessos histriônicos. Basta vê-lo como alter ego de Costner em Instinto Secreto. Hurt dá show como a lúcida projeção da mente do assassino, enquanto Coster faz coreografias artificiais para mostrar como é tarado na hora de matar. Costner tenta ser mínimo também, mas se entrega, pois é um ator limitado. Ao contrário de Hurt, realmente assustador no seu papel em que encarna a essência da maldição americana: o de matar sempre, principalmente quando não há motivo. É aparentemente o oposto da matança oficial, que invoca a democracia, a paz, e o american way of life para colocar as patas nos outros países. Mas no fundo é a mesma coisa: escolhe-se uma vítima e pôu nela. E depois parte-se para outra.

Vi o trailer do Rambo IV: lá está a tara de novo. A gula de matar a diferença, para que o Mesmo (eles) triunfem todos os dias. Se pararem de matar, poderão desaparecer da face da terra. Ou , pelo menos, vai desaparecer essa massa de filmes que disseminam a doença terminal americana para incautos telçespectadores do mundo inteiro, transformando-os em aliados, numa progressão perversa que a tudo destrói.

RETORNO - 1. Imagens de hoje, pela ordem: Russel e Denzel no filme de Scott; Costner e Hurt no "Instinto Secreto"; e Cage e Biel em "O vidente". 2. Saiu no Almanaque Gaúcho desta sexta-feira, dia 15 de fevereiro, na Zero Hora: A frase "Com seu clima e seu rumor" foi incluída erroneamente ao final do poema O nome da terra, de Nei Duclós, publicado na edição de 13 de fevereiro.

14 de fevereiro de 2008

TÉCNICAS DE VENDAS


Estreei nas vendas aos 14 anos, quando comecei a atender na Casa do Pescador, montada numa pequena garagem por meu pai no início dos anos 60. Como pastei muito até finalmente me desvencilhar do balcão, acabei me transformando num observador crítico dos negócios. Praticamente faço amizade com todos os comerciantes da região onde moro. Quero saber como funciona, o que pega, quais as estratégias. Ao mesmo tempo, fico olhando como é o atendimento, a oferta de produtos, o que agora chamam de diferenciais e que é o pulo do gato de cada portinha onde se abre um sonho.

O comércio em geral tem condições de melhorar tudo, mas não faz ou não consegue. Algo emperra a evolução. Ainda estamos na época das retaliações e das desconfianças. Para nós, os brasileiros, todo comerciante é ladrão e para estes, todo freguês é um folgado. Como conseguem comprar e vender com um barulho desses? Mistério. Ainda mais que noto a quantidade de gafes cometidas pelos que deveriam beber hectolitros de Simancol, os próprios vendedores. Vou destacar alguns capítulos dessa história tenebrosa.

É A MARCA QUE EU USO

Deve funcionar, pois eles sempre dizem isso. Essa geladeira faz barulho? "Silenciosíssima. Comprei uma para mim e não me incomoda". Essa toalha dura mais do que um ano? "Muito mais, é essa que eu tenho no meu banheiro". Você leva o troço para casa e não consegue dormir, pois o refrigerador não cansa de denunciar que há um macaco dentro dele, sempre desperto. E a toalha se esgarça no primeiro mês. Nem serve para pano de chão.

LASSEIA

Você calça 44 e quando diz seu número todos caem na gargalhada. Aí te trazem, claro, o 43, que é simplesmente a mesma coisa. Mas esse joça me aperta, digo, alarmado. "Ah, mas lasseia. Em seguida teu pé acostuma". Ou seja, quando o sapato completar seu ciclo útil aí sim teu dedão, que ficará de fora, caberá no número oferecido. Quando me trazem o 43 sem eu ver e noto que aperta e replicam lasseia, saio imediatamente da loja.

NÃO MEXA EM NADA. QUEBROU, PAGOU

"Mas você entulha a estante de quinquilharias, não deixa espaço para a gente passar e ainda reclama quando esbarramos sem querer numa merda de barro colorido imitando o folclore? Se você me cobrar pelo que quebrou, então vou jogar todas essas merdas no chão, de propósito". Esse é o tipo de diálogo que se estabelece numa lojinha de arte aqui da ilha. Outro hábito é proibir as pessoas de folhear revistas e livros. Tem que comprar de olhos fechados. O ideal é pagar e não levar nada.

FIQUE À VONTADE

Já comentei aqui no Diário da Fonte, acho que mais de uma vez. Mas merece figurar nesta antologia. Fique à vontade quer dizer: "Estou de olho em você. Se sair sem comprar nada, te rogo uma praga. Se ficar empatando muito, vou te empurrar para fora. Se perguntar por algo que não temos, vou te ignorar e tentar te vender o que bem entendo". O fique à vontade do comércio é como aquela velha dona de pensão, que dizia para estudantes famintos e duros: "Podem se servir à vontade, de uma banana".

VAI QUERER O QUÊ?

Essa frase vem acompanhada por um levantar de queixo em direção ao pobre do cliente. "Vai encarar? O que você quer aqui no meu estabelecimento? Quer levar um soco? Quem mandou entrar? Só atendo os meus iguais! Saia imediatamente! E não esqueça de passar antes no caixa. Entrou aqui, fica devendo".

VAI PAGAR A DINHEIRO???

Como não existe mais moeda, mas apenas uma promissória de quanto cada brasileiro deve para os gringos, o dinheiro se tornou um pesadelo no comércio. Todo mundo quer ser pago com qualquer coisa, menos com grana. Porque a bufunfa encerra o compromisso, a relationship entre vendedor e comprador. É pa-pum. Enquanto um crediário leva esse laço até o infinito.

SÓ TEMOS NA OUTRA LOJA

Toda loja tem outra similar, fantasma, que dispõe do produto que você quer. Pode ser uma filial, a matriz, o depósito, mas jamais ali onde você está. Serve para o vendedor tirar um toco de você, dizer que ele tem, mas não vai te vender. Aliás, ele não está a fim de te vender. Você atrapalha, enche o saco, entra nas dependências que pertencem a ele. Um estabelecimento comercial é concebido para servir o proprietário. É o lugar onde ele é rei e o resto (você) súdito. Tem exceções, e esses enriquecem.

"NÓS TRABALHAMOS DESSA FORMA"

Contribuição de André Falavigna, que confessa adorar essa : “É mais ou menos assim: ou vocês compram o que eu quero vender pelo dinheiro que eu quero ganhar e pagam como gosto de receber, ao invés de comprar o que precisam pelo que podem e pagarem do jeito que dá, ou vão para as putas que os pariram, compreendem?”

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Debret e a velha relationship brasileira. 2. Saiu no Almanaque Gaúcho desta sexta-feira, dia 15 de fevereiro, na Zero Hora: A frase "Com seu clima e seu rumor" foi incluída erroneamente ao final do poema O nome da terra, de Nei Duclós, publicado na edição de 13 de fevereiro.

12 de fevereiro de 2008

CITAÇÕES CENTENÁRIAS


Nei Duclós (*)

Citar de memória é a verdadeira citação. Citar letra por letra é plágio. Não que as sutis mudanças introduzidas, sem má-fé, na frase original, sejam o passaporte para a originalidade. Criação é outra coisa, diferente de pegar carona no pensamento alheio, que exige mais do que pose.

Impõe-se primeiro a prudência, e depois o pudor, pois o cuidado para não distorcer convive com a vergonha de se fazer passar pelo autor. Essas duas virtudes podem manter o sabor do original, que na fonte foi concebido sem o pecado do cânone, da cultura estabelecida e incontestável.

Tanto cuidado serve para não aborrecer o leitor, que tem olho treinado para pular tudo o que finge ser erudição. Ostentar sabedoria é a prova mais completa de provincianismo. É fruto perverso da solidão intelectual, a que ceva a ilusão de que somos únicos.

Citações barrocas crivada de aspas, números romanos e referências em língua morta empurram a leitura para fora da página. Já a honestidade de uma lembrança, de algo que há tempos fez a cabeça, conserva a força inaugural do pensamento famoso. Atrai a simpatia de quem jamais ouvir falar no assunto, ou se convenceu de que nunca escreveria algo semelhante (a atual arrogância nasce da falta de parâmetros, que precisam ser resgatados, não para reinventar a humildade, mas pelo menos para gerar algum silêncio na algaravia).

Vestida assim desse uniforme de guerra, costurado como sintonia entre a grande sacada e as águas rasas, a citação acompanha a marcha humana dos dias contados e se expressa sem os estandartes que, merecidamente, deveriam anunciá-la.

Há autores que usam as duas formas. Jorge Luis Borges, por exemplo, tanto repassa a majestade de sua biblioteca quanto nos convence que leu há tempos uma passagem da qual, nos parece, não se recorda inteiramente, preferindo selecionar apenas uma de suas múltiplas faces.

Melhor ainda é citar Borges, que intercala entre tantos mestres sua verve treinada pelos mistérios, seu talento especializado em abismos. Em Novas Inquisições (ou seria em O Fazedor?) ele chama a atenção para a injustiça que se comete quando focamos apenas um aspecto de um grande autor. Deixamos de lado uma produção tratada como resto, ou simplesmente esquecida. Ou nem prestamos atenção numa qualidade que melhor definiria a personagem, que por obra dessa indiferença, ocupa o imaginário numa posição cristalizada, mas incômoda.

Borges não se conforma com a imagem acabada de suas notoriedades favoritas e fustiga seus admiradores, levando-os para platôs de onde se descortinam possibilidades antes consideradas remotas ou inverossímeis.

Essa ambivalência de Borges (a frase reproduzida fielmente e a citação diluída na sua teia de palavras) faz parte do seu gênio. São dois Borges, como revela, numa página antológica. Um que passeia a esmo e vê vitrines e outro que recebe prêmios e publica livros. Qual dos dois denuncia a divisão interna? Ficamos na dúvida e esse sentimento é o degrau que nos falta quando decidimos mergulhar com prudência no desconhecido, e somos colhidos pelo pudor da nossa individualidade, nua diante do cosmo ingrato.

As citações são como pragas em efemérides que se reportam às celebridades das nossas letras. Machado de Assis e Guimarães Rosa compartilham 2008 com seus centenários de morte e nascimento, respectivamente. Que sejamos poupados do excesso de batatas aos vencedores e de vivências muito perigosas.

RETORNO- 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 12 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Jorge Luis Borges.

11 de fevereiro de 2008

FIM DO TOM DEFINITIVO


Dizer algo e ficar tudo por isso mesmo é uma situação criada pela mídia com retorno limitado, como é o caso do jornalismo impresso. Os jornais, principalmente os grandes, e as revistas de maior circulação, formaram jornalistas que adoram dizer como se nada mais precisasse ser dito.

O tom definitivo praticamente define as griffes da grande imprensa, os colunistas que escrevem sem admitir, pelo tom, nenhuma contestação. Quando há briga de cachorro grande, vemos os egos se digladiarem como se fossem linhas paralelas, já que a pose da opinião de mão única, no fundo, não admite retorno. Isso tudo está fazendo água com a internet, que obriga a granfinagem das palavras a descer do pedestal.

Ainda estamos trafegando entre o rei da cocada preta e o serial commentador. O primeiro é aquele cara que vê todo mundo de cima, principalmente os leitores. O segundo é o que abusa da facilidade da rede para escrever sobre tudo e até mesmo imitar as estrelas. O resultado é uma algaravia de monólogos. “Dizidas” pontuadas por expressões como “se é que vocês me entendem, errado!, o resto é o resto” emprestam verniz aos chamados formadores de opinião.

O que está em jogo, infelizmente, não é a posição prosaica ocupada pelos interlocutores, mas o fluxo das idéias que poderiam destravar os nós do país em ruínas. Isso acaba não acontecendo, pois estamos travados pela situação econômica, toda ela voltada para a tunga do país.

O imperialismo econômico, hoje travestido de responsabilidade social, governança, qualidade e desenvolvimento sustentável, precisa que hajam emissores incontestes de idéias e seus consumidores passivos. As fontes do conhecimento e do saber emanam de quem detém o poder econômico, ou seja, as grandes corporações e os governos dos países milionários.

Aqui, temos reprodutores dessas idéias fixas, que são os tais colunistas da política e da economia. É costume não haver uma só migalha de uma idéia original e insurgente, é tudo repeteco das modas importadas. Esse ouropel é disseminado pelos veículos de comunicação por sujeitos que vestem a glória do tom definitivo.

O álibi perfeito é o que chamam de informação. Como são fulanos bem informados, usam a sedução do fato desconhecido para justificar a posição de hegemonia. Mas com a proliferação de fontes pela internet, vindas de todo o tipo de cabeça, é fácil hoje cercar essa indiferença olímpica com o incêndio das revelações que estavam ocultas, com o fogo das opiniões geradas em espíritos livres.

Hoje o computador permite que os deuses sejam chamados de tchê-loco. Há esperneio por parte das sumidades, que a toda hora precisam se explicar. Muita coisa vai parar nos tribunais. Mas o fato é que a grossa dinheirama das cabeças feitas continua fluindo, enquanto ladra a alcatéia de iconoclastas diante da caravana bem remunerada.

RETORNO - Imagem de hoje: o rei de Espadas.

10 de fevereiro de 2008

A CULTURA PRODUZIDA PELA DITADURA


A ditadura econômica não podia continuar usando economistas tradicionais, como Roberto Campos ou Octavio Gouveia de Bulhões, ou economistas políticos escroques, como Delfim Netto (que recentemente, num hilário artigo da Folha, recheado de anacronismos, imaginou um 1945 sem Vargas, um 1985 quarenta anos antes). Precisava de algo mais, como os economistas heterodoxos, que destruíram nossa moeda com sucessivos planos mal sucedidos.

Como todos foram queimados, os primeiros pelo regime militar e os outros pelas burradas da nascente Nova República (ou a ditadura consolidada) era preciso mais ainda. A ditadura tinha uma na carta manga, cevada desde os anos 60: o intelectual orgânico, que se identificava com o pensamento dito progressista (desde que fosse anti-Vargas). Este, devidamente queimado por sua vez, foi substituído por algo ainda melhor, o clone do trabalhismo, que engoliria todos os esforços das lutas populares.

Sebastião Nery, no site da Tribuna da Imprensa, divulga o lançamento do livro Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura, da pesquisadora inglesa Frances Stonor Saunders (editado no Brasil pela Record, tradução de Vera Ribeiro). O livro, que é super bem documentado, reporta o fato de a CIA ter instrumentado a Fundação Ford para inundar de dólares os intelectuais fazedores de cabeça do Terceiro Mundo, como FHC, que com a bufunfa fundou o Cebrap, depois de ter prestado bons serviços com sua teoria sobre as maravilhas e benesses da dependência aos Estados Unidos. Do Cebrap saíram coisas como Francisco Weffort (não por acaso, ministro da Cultura de FHC), autor da teoria do populismo varguista, a que deu base para inventar o petismo, que com o tucanato dividiu o privilégio de entregar a soberania do país integralmente.

Já que o Brasil tinha sido governado por hediondos populistas anti-semitas (aqueles estadistas que enviaram tropas para lutar de armas na mão contra o nazi-fascismo), então era o caso de entregar as chaves do cofre para os neo-babadores de ovo do imperialismo. A primeira providência foi desmoralizar essa palavra, imperialismo, e debochar das chamadas perdas internacionais. Em troca, os espertalhões ganhariam muitas honrarias pelo mundo afora. Basta lembrar a cara de palerma de FHC com suas coroas de honoris causa. Era incensado por entregar o patrimônio nacional, construído ao longo de séculos, e que sumiu com meia dúzia de decisões criminosas.

A cultura que se produz na ditadura, da contrafação modernista (a cavaleiro da revolução oswald-marioandradina) aos pseudo escritores que posam esfregando a bunda no piso encerado das bibliotecas paternas, passando pela mídia especializada cool (que lembra outra palavra, mais prosaica), está voltada para a desagregação do Brasil soberano. Em troca da pretensa hegemonia dos charmosos bajuladores do dólar, tudo foi feito para acabar com o país que não permitiu que imperasse a política econômica entreguista dos grandes monopólios voltados para a exportação (o que nos transformava numa plantation qualquer, daquelas idênticas que existiam, no Caribe, e que agora estão de volta com o tal biocombustível, tese que saiu de Bautista Vidal, político a serviço de Geisel que pegou carona no neo-trabalhismo entreguista pós Brizola).

O coronelato da grana teve que ficar sob o tacão de uma política nacionalista e trabalhista, pagar direitos aos trabalhadores e assumir responsabilidades, muito longe da putaria de hoje, em que até chinês vem aqui dominar nossas fábricas. A cultura, que está a soldo dessa situação, não pode se insurgir contra ela e portanto inventa a tese do Estado de Direito, distribuindo mais dinheiro para quem compactuar com suas teorias bagaceiras. Na periferia dessa monstruosidade oficialesca, há também a marginalidade intelectual, já que a ditadura providencia tudo, de Maluf a Marta Suplicy, de Erasmo Dias a Henry Sobel. Essa marginalidade tenta sobreviver também se alimentando das ruínas do modernismo, mas carnavalizado. O que os denuncia é a identificação anti-varguista, já que é preciso ficar de acordo sobre o verdadeiro inimigo.

E o inimigo somos nós, prezado leitor. Nós, que amávamos tanto a revolução e que ficamos de fora das avalanches de dinheiro que soterraram qualquer resquício de arte verdadeira. Vendo o intrigante filme de Julio Bressane, Dias de Nietzsche em Turim, me chamou atenção o trecho em que o filósofo fala da arte como a única salvação para uma vida plena, já que fora dela não somos nada. É nesse coraçãozinho batendo sem parar, a necessidade de criar, fazer arte e viver dela, é que eles interferiram. Compraram as cabeças, desvirtuaram os estudos, fecharam as comportas da criação. E o que temos? Caras compungidas de pretensa produção de pensamento, traidores em fila para receber os trocos distribuídos pela bandidagem global.

Não tente furar esse bloqueio, que serás execrado até o final dos tempos. Quando destampares esse bueiro e teus miolos se esparramarem pela calçada de má fama, quando tua poesia, teu romance, teu livro para a juventude chegar ao ponto de não poderem ser mais ignorados, eles então usarão os cretinos milenares, os que posam de escritores e intelectuais, os que você até chegava a considerar.

Pois eles estão de plantão. Não perdoam terem sido desmascarados em sua poses de carnavalização do caos, a que celebra a frescurada para deixar passar o bloco dos tanques e das botas imperiais. Eles te pegam na saída, como se dizia no colégio da minha terra. Te cagam de pau, como costumávamos dizer. Quem manda se meter a besta. Por que não ficou quieto no teu canto, morrendo lentamente, para que tudo fique na mais gloriosa paz? Bobalhão, imbecil, burro. Por que não te calas? Ou, como me disseram quando comecei no jornalismo e já colocava minhas garras de fora: “É assim que queres sobreviver na sociedade de consumo?”

RETORNO - Imagem de hoje: cena, com o ator Fernando Eiras, de "Dias de Nietzsche em Turim", de Julio Bressane. O filósofo com o espírito livre, diante do abismo de sua individualidade e de sua missão de transformar o mundo, dá uma aula de resistência por meio do pensamento que alcança o status de arte.

9 de fevereiro de 2008

POSSE


Nei Duclós


Não se aposse
da vida que me pertence

Não dê ordens
Nem tudo tem o seu preço

Não agende
Meu destino de semente

Não apronte
o que refaço no tempo

Não alongue
A dor da tua presença

Não esconda
O amor pousado no berço

Não reduza
A pó o que está inteiro

Não me roube
O tesouro transparente

Não destrua
A flor sagrada do encanto


RETORNO - Imagem de hoje: uma tragédia vista por Debret.

8 de fevereiro de 2008

O MISTÉRIO DOS GIGANTES


A foto acima, de Airton Ortiz, foi postada no blog de Sérgio Saraiva, que está sentado sob o grande rosto de pedra situado na região de Garopaba, no litoral catarinense. Os premiados jornalistas Airton (com o Euclides da Cunha, pelo seu livro "Expresso para a Índia") e Sérgio (com um Jabuti, por seu livro "O caso da Favela Naval", escrito junto com o promotor de justiça José Carlos Blat), nada têm a ver com as teorias sobre os gigantes que acumulei ao longo de algumas leituras e certas inspirações misteriosas em dias de vento.

Mas acredito que os vestígios que vemos por toda a parte, de grandes monumentos, anteriores aos índios, enormes estátuas, muitas delas não reconhecidas e completamente imersas no anonimato da paisagem (como é o caso da que aparece na imagem) fazem parte de um certo estágio da terra, propício ao aparecimento do que está reportado no Gênesis: “Naquele tempo, havia gigantes sobre a terra”.

Lendo o livro de Max Heindel, “O Conceito Rosacruz do Cosmos”, que é a recepção espiritual de explicações sobre nossas origens, ficamos sabendo que a terra, ao se condensar lentamente de seu estado original de puro fogo para o esfriamento e o surgimento de vida, passou por várias etapas. Do estado gasoso ao estágio concreto que temos hoje, existiram fases intermediárias, em que a gravidade não possuía a força atual e era mais diluída. Isso dava margem ao surgimento de seres enormes, que acabaram desaparecendo quando enfim o planeta encontrou seu ponto de equilíbrio, se condensou e com isso definiu uma força gravitacional que não permitia, pelo menos em terra (na água sobreviveram como espécie as baleias), a vida das enormes criaturas.

Acho essa explicação melhor do que o tal meteorito que acabou matando, vejam só, apenas os dinossauros. Nunca engoli essa história. Quer dizer que os bicharocos foram as únicas vítimas do grande impacto, o resto sobreviveu lampeira? Contem outra. A terra mudou e acabou reduzindo o tamanho dos seres que a habitavam. Estes tiveram que se adaptar à nova situação e foram perdendo tamanho, só permitido nas eras em que a terra estava mais para Júpiter do que para a Lua. Naquele tempo, em conseqüência da estrutura terrestre, as pedras não tinham a consistência que possuem hoje.

Isso facilitava o trabalho dos gigantes, que a colocavam sob medida em monumentos como Macchu Picchu (que os incas descobriram e ocuparam). No planeta inteiro, vemos vestígios dessa civilização perdida. No Brasil, então, é um espanto. Vila Velha, no Paraná, com seus gigantescos cálices, Sete Cidades do Piauí, com suas evidências de que foi uma grande metrópole, montanhas em forma de pirâmides ou de perfis humanos, a grande pedra da Gávea (que os fenícios descobriram já esculpida, mas gravaram nela sua passagem), e muitos outros sinais, como os menires, sobram por toda parte.

Nesses vestígios, estão eternizadas escritas que jamais foram decifradas. Nem serão tão cedo, pois os estudos ainda estão concentrados em épocas muito recentes, na base de cinco a sete mil anos, sendo que alguns arriscam mais, entre 30 e 50 mil. Na China, recentemente, descobriram um fóssil humano de cem mil anos. Estão chegando, mas ainda estão longe. A morte dessa civilização da pedra se deu a centenas de milhares de anos. Isso significa que existiu por milhões de anos, pois a grandiosidade dos monumentos não deixa dúvida: foi preciso tempo para que fossem construídos.

Um dos argumentos contrários à existência dos gigantes é que não existem deles nem sinais, o que me faz rir. Imaginem se a caratonha de pedra que vemos nessa foto não tenha sido originalmente uma estátua, mas parte de uma pessoa real, que o tempo transformou em pedra. Muita viagem? Essa para mim é realmente a fronteira que merece ser desvendada. Mais do que uma viagem às estrelas, precisamos entender o que houve aqui mesmo no planeta, que faz parte do céu que vasculhamos atrás de verdades insondáveis e assombrosas. Pisamos nos mistérios distraídos, sem saber que a ventura desta vida é procurar saber o que fica oculto, soterrado pelo tempo mau.

7 de fevereiro de 2008

A IDEOLOGIA DA SEDUÇÃO


Todo mundo sabe, mas finge esquecer: os Estados Unidos inventaram o exército dos talibans para peitar a invasão soviética no Afeganistão. Mas isso não importa, porque é necessário enterrar a verdade para que triunfe a ideologia do Império. Só agora houve a denúncia de que a CIA inundou a indústria cultural depois do macarthismo, que foi o divisor de águas entre a liberdade e a manipulação de filmes, livros, carreiras inteiras de autores notórios. O projeto vingou e hoje temos um cinema totalmente amarrado aos objetivos e interesses americanos. A intervenção pode ser direta, quando há grana explícita para incensar instituições criminosas como a CIA ou o Pentágono, ou indireta, quando somos seduzidos pela mentira pura e simples.

É o caso de O caçador de pipas, de Marc Foster, que já nos deu bons filmes, como Em busca da Terra do Nunca e Mais estranho do que ficção. Adaptação do mega-sucesso de Khaled Hossein nas livrarias, o filme é sobre a punição de uma cultura, a afegã, que pecou ao viver sob o tacão do autoritarismo e da divisão entre castas, e pagou caro quando os homens maus da URSS invadiram o país, cortaram as árvores, queimaram mesquitas e queriam comer as mulheres que carregavam bebês no colo.

A única redenção é se entregar como um filho da mãe para a civilização americana, pagar seus pecados revisitando o país de origem, destruído, trazer o órfão violentado pelos monstros muçulmanos e resgatar a inocência perdida num parque verdejante, cheio de pipas coloridas. De quebra, o protagonista estéril e hiper-culpado por ter expulso o próprio irmão de casa, ainda peita o ex-general afegão que está grudado a uma cultura morta. Todos precisam se adaptar ao politicamente correto, para usufruir dos lençóis limpos do quarto impecável e de uma carreira brilhante como escritor reconhecido.

O pai do protagonista, que fez o filho na empregada e deixou que seu rebento legítimo expulsasse o outro de casa, é punido com uma doença terminal. O algoz da infância, o que violentou o amigo do protagonista, se transforma num perverso taliban. A noiva pecou no passado, mas o casamento na Califórnia vai redimi-la. O amigo do pai, que compactuava com as corrupções na época áurea de Cabul, também é punido com a doença e a morte. Mas de tudo resta um pouco: a necessidade de recomeçar na América, de abandonar a cultura afegã e de se reconciliar com a religião desvirtuada pela barbárie, desde que ela não o prenda à sua terra de origem, tornada inabitável.

Vamos ver se eu entendi: os americanos tocam o puteiro no Afeganistão junto com os russos, mas são lavados de toda a culpa colocando os pecados do mundo nos ombros dos cidadãos retirados de suas vidas e de seu país. Como acontece essa mágica? Dentro do coração e da mente do autor, que é afegão e mora na América. Não é mais um autor afegão, mas americano, mas isso não importa. O que fica é o exótico (e exímio) contador de histórias de terras distantes fazer uma autocrítica de sua cultura e se render às maravilhas do Império.

Tudo isso é mostrado num filme quase impecável na narrativa, com bons atores, bons diálogos, e momentos de grande tensão (só uma cena ridícula, o do resgate do garoto no ninho dos talibans, hilária e inverossímel). É a sedução da ideologia. Você se emociona, você sai de alma lavada. Que coisa esses afegãos, como são culpados, mas felizmente tudo volta ao normal na América. Lá está de novo a luta de pipas, representação inocente dos conflitos. Cerol na cultura alheia é refresco.

É moda atribuir à cidadania a responsabilidade que cabe ao poder. Aqui no Brasil, a ditadura põe a culpa em você por ter eleito essas coisas que ela nos impõe e nos governam. O Afeganistão foi destruído pela disputa do butim mundial por parte dos países imperiais e não porque um garoto sacaneou seu irmão ilegítimo. Pecado original de ex-cidadãos, criaturas sem pátria. É o que nos tornaremos se continuarem a sucatear nossa soberania. É preciso ficar atento: os brasileiros, pela quantidade, não cabem na Califórnia.

RETORNO - Imagem de hoje: cena de "O caçador de pipas".

6 de fevereiro de 2008

ELITE DA TROPA, O LIVRO


Assim como Tropa de Elite é um filme, Elite da Tropa é um livro. Ambos de ficção, que é a narração criada a partir de dados reais. Mesmo a mais bizarra, absurda e louca literatura paga pedágio para a chamada realidade prosaica, a que vivemos todos os dias e que inventou a fome para não perdermos o parâmetro. Imaginem um mundo sem o apetite. Não existiria. Imaginem o capitão Nascimento extraído do nada, do buraco negro da invenção pura e simples. Não cola.

Imaginem as histórias do Bope, tema da parte “Diário de Guerra” do livro, ou a trama que liga o tráfico à política, tema da parte “A cidade beija a lona”, que livrasse as autoridades de qualquer responsabilidade. Não existe. Quem defende a tese absurda que tudo não passa de mentira bem embalada, deveria pedir para sair. Porque tanto o filme, dirigido por José Padilha, quanto o livro, assinado pelo sociólogo e especialista em segurança Luiz Eduardo Soares, e pelos policiais André Batista (na ativa) e Rodrigo Pimentel (fora da tropa), dão uma geral na realidade.

Isso não significa que as duas obras sejam “reais”. Não são. São obras de ficção, que se diferenciam pela narração escolhida. No filme, todos sabem: quem narra é o ator Wagner Moura, interpretando o capitão Nascimento, que é um desvio de conduta do narrador original, do livro. Este, é negro e faz direito na PUC. Nascimento é mestiço tido como branco e nem chega perto da universidade. O narrador da maior parte do livro empresta parte de si para Nascimento e assume papel coadjuvante no filme. Foi uma decisão forçada pela diferença de meios, de linguagem. Funcionou.

Só que o livro, quando pretende fazer roteiro de novela, na parte em que o capitão do Bope praticamente some da trama, perde a força. Não importa. O recado fica bem explícito. A bandidagem tem uma fonte: a política. Acrescento: da ditadura. Por estarmos numa ditadura é que deputados, secretários, governadores, altas autoridades policiais, fazem o que fazem, impunemente. A imprensa faz parte da farsa, participando do caos armado pelos poderes, em que a dispersão é o insumo para que tudo funcione. O livro denuncia a absoluta falta de escrúpulos de quem tem interesse político e financeiro para lucrar com a criminalidade.

O país deveria fechar depois da publicação do livro e do lançamento do filme. Não é por nada que os dois viraram best-sellers. É porque pegou na pleura, tocou na ferida, lancetou a craca acumulada. Nunca, no Brasil contemporâneo, obras de ficção tiveram esse poder de sintonia com o imaginário do país. O sucesso significa, por oposição, que os outros escritores e cineastas não estão acertando o tom de interagir com a sociedade. É porque, na maioria das vezes, tanto nos livros quanto nos filmes os autores pagam pau para a ditadura. Ou seja, deixam tudo como está para ver como fica. Obviamente, piora a cada dia.

Padilha, Soares, Baptista e Pimentel se insurgem contra essas águas paradas e agora agüentam o tranco. São acusados de fascistas, mentirosos, traidores, o escambau (ainda se usa escambau? Estou longe das fontes das gírias). Eles são autores que podem ser comparados a uma tropa que invadiu o Rio com todas as suas contradições internas, suas limitações, sua tesão. Expõem o tutano da nação em frangalhos, a que procura tirar proveito da transgressão. Assumem as personas dos algozes, ao mesmo tempo vítimas, de um processo perverso que tem nas altas esferas da República seus lideres mais imediatos, e nos interesses imperiais do mundo transformado em mercadoria, seus inspiradores mais eficientes.

Não somos o Iraque, não temos oposição para justificar uma intervenção direta. Temos quem faça o serviço sujo aqui dentro mesmo. E o Rio de Janeiro é apenas a caixa de ressonância. O tecido social inteiro, de alto a baixo, de lado a lado, está contaminado e verte pus por todos os poros. Enquanto isso, brincamos de escrever, nos adaptamos a projetos pífios e somos os espectadores bestializados de mais um desfile de monstruosidades.

RETORNO - Imagem de hoje: a capa do livro é uma contrafação, pois o capitão Nascimento do filme de ficção que aparece nela não é o narrador literário. Serve ao marketing, mas é bom ficar atento a esse tipo de diferença.

5 de fevereiro de 2008

LINHO NO ENTRUDO


Nei Duclós (*)

A tocaia, no alto do muro ou na quebra da esquina, usava o balde com água até a borda, derramado sobre o linho branco e o vestido engomado. O ato selvagem do entrudo, que ainda vislumbrei na primeira infância, possuía o charme de uma carga de cavalaria. Os adultos, tão sérios no resto do ano, enlouqueciam no vale-tudo. Por ser perigoso, o carnaval era circunscrito a quem tinha recursos elementares de defesa, como idade e físico para se arriscar fora de casa.

Ninguém escapava. Os marmanjos, de calças arregaçadas e sem camisa, armavam-se de toneladas de água. O sentimento de vingança tomava conta de pessoas tão cordatas. Queriam ver os renitentes, que insistiam em sair com suas roupas domingueiras, serem enxovalhados sem dó pela barbárie.

Havia peso no ar, e não era apenas o calor e o mormaço. Havia a proibição de ser normal. A criminalidade do comportamento tinha carta branca para se manifestar, sem o favor de nenhuma lei, a não ser a do calendário. Era uma fenda que se abria no regime fechado das virtudes e por ela despencavam as personalidades mais notórias. E não emergia apenas o jogo bruto do banho forçado, mas cenas mais sutis de deboche, inspiradas por grossa malvadeza.

A vítima poderia ser o vizinho de terno impecável que olhava para os lados antes de se abaixar diante da nota de um Cruzeiro, jogada a esmo sob o sol das três da tarde. Um Tamandaré, como era chamada a nota, já não valia muita coisa naquele início dos anos 50, e isso dava graça maior à empreitada. O dinheiro estava bem amarrado por algum moleque que, oculto, segurava uma linha invisível. No momento em que o distinto se esforçava para alcançar a prenda, tendo o cuidado de não amarrotar o friso, o espetáculo patético chegava à consagração.

A determinação desmascarava a pompa. O sujeito que costumava selecionar o cumprimento, restrito à vizinhança feminina, não passava de um espertalhão vistoso. Ao ser flagrado quando estendia o braço miseravelmente, enquanto a nota arisca escapava para baixo do portão, uma onda de gargalhadas tomava conta da rua, aparentemente deserta, mas lotada de foliões anônimos.

Diante da radicalidade dos eventos, a máscara não era apenas sinal de brincadeira, mas de sobrevivência. Era preciso manter a dignidade a partir da quarta-feira de cinzas, mas sem abrir mão da oportunidade de se transformar no monstro que pedia para mostrar a cara. Isso tinha serventia, especialmente para achacar as casas a bordo de um turbulento bloco de rua.

Lembro do Pátio dos Milagres em que se transformava a calçada em frente onde morávamos. Nela evoluíam o bizarro e grotesco vestidos de trapos, exibindo um estandarte forrado de lantejoulas e de algumas notas pregadas com alfinete, que deveriam ser acompanhadas por outras, as que tínhamos nas gavetas. O som violento de latas, já que os couros eram escassos e não havia gato suficiente para atender a demanda, era espichado até a insânia. A turba não saía da frente enquanto não depositássemos os trocados mais escondidos da residência.

Mais tarde, conheci o carnaval organizado dos desfiles das escolas de samba, com seus cordões e baterias impecáveis, e dos salões, lavado por lança-perfume e sopro de metais. Tudo muito civilizado. Nada parecido com o entrudo, que era a denúncia de uma sociedade falsamente equilibrada. Ao contrário de hoje, quando a transgressão do carnaval reitera a falta geral de compostura.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 5 de fevereiro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: nota de um Cruzeiro, com a estampa do Almirante Tamandaré. 3. No texto "Osso duro de roer", de 30 de outubro de 2007, escrevi o seguinte: "Todo mundo já falou sobre Tropa de Elite, de José Padilha. É preciso abordá-lo pelo que é: um filme". Hoje, dia 5/02/08, Luiz Carlos Merten escreve, em matéria publicada no DC, que o filme de José Padilha, é "uma obra muito polêmica por seu significado político e sociológico, mas cinema, mesmo, pouca gente se preocupou em dissecar a construção dramática, a simetria audiovisual, ou ainda a montagem de Tropa de Elite". O Diário da Fonte acertou no veio. Continua Merten: "Para Padilha, a ida a Berlim recoloca as coisas nos eixos. Como Zagallo que, vitorioso, dizia que a torcida brasileira teria que engoli-lo, o diretor de Tropa de Elite espera que agora, finalmente, seu filme seja valorizado, ou debatido, como cinema".