O presente é a soma do passado, nos diz Henri Bergson, o filósofo que escrevia tão bem que ganhou o Nobel de Literatura em 1927. E escrevia em francês, uma língua em que “passa o alho” soa poético. O que ele sugere, pelo menos para mim, que freqüento a filosofia com a prudência dos leigos em território sagrado da linguagem? Sua prosa, que escorrega como manteiga em dia de sol, ao contrário de muitos alemães, que escrevem para serem lidos em ambientes com temperatura abaixo de zero, desmascara o eterno presente. Praticamente enterra a ilusão reinventada todo ano pelo pêndulo das festividades, esse eterno retorno de falsas necessidades de consumo.
O presente é uma impossibilidade, por ser volátil e não se sustentar no tempo
O passado se presta a inúmeros equívocos. Um deles é que podemos nos livrar de nós mesmos, como borboleta que abandona a lagarta seca. Vemos como, nas mudanças, as pessoas resolvem se livrar da tralha acumulada. Vida nova, dizem, convictas. Colocam a maior parte das traquitandas na frente da casa que será abandonada. Aos poucos, aquele joio será recolhido, mas ainda resta muita coisa. Tenta-se negociar, mas os comerciantes do ramo sabem que o acúmulo de coisas inúteis é uma armadilha que não vale um tostão furado. Então, paga-se para levarem o mais pesado do que o ar: estantes de ferro vencidas, móveis que não cabem mais em vivendas pós modernas, abajures criativos dos 70 que perderam o carisma, máquinas analógicas superadas pela vilania digital.
Mas ainda sobram mais coisas e então aquele lixeiro, líder do grupo, aceita amarrar os trastes ao caminhão que vocifera. Pronto, é assim que nos livramos do passado. Restaram alguns volumes insubstituíveis, que nenhum sebo comprará por mais de quatro reais o exemplar, mesmo que se trate das obras completas de Fernando Pessoa ou o Machado de Assis definitivo. É hora de fazer também esse último sacrifício. E, quase sem nada, se decidir por uma viagem que resolva a vida pessoal sempre complicada no país maquiado e em ruínas.
Há esperança. O presente se apresenta mais leve e o futuro se abre sem a carga mortificante da memória nas costas. Recolher-se ao ermo, alugar uma casa de sapé, ocupar um quarto no vasto litoral, na curva do morro, embaixo de uma figueira
É quando o sol se põe para sempre. Nunca mais vai amanhecer nessa vida que resolveu jogar o passado fora. A noite assoma como prisão. Já ouvi falar de gente que saiu correndo logo depois de cruzar a madrugada inaugural no sítio escolhido para ser a redenção. Alguns se atiraram ao primeiro churrasquinho de gato na beira de estrada. Precisavam do passado, precisavam da eternidade. O ano mal tinha começado com seu bem-vindo acervo de conflitos.
RETORNO - 1. (*) Crônica publicada na edição do dia 31 de dezembro de 2007 e 1º de janeiro de 2008, no caderno Variedades do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: "Paisagem Toscana", de Fulvio Pennachi. 3. Agradeço a leitura atenta e permanente dos fiéis leitores do Diário da Fonte e a visita de todos os que encontram por aqui algo de algum proveito. Agradeço o retorno, sincero e generoso, e desejo um feliz 2008 para os próximos e distantes.
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