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15 de novembro de 2007

O GORDINHO VILÃO


Gordura é vilania, no cinema e na literatura. O obeso é Goldfinger, oposto ao sarado herói 007 (que é assassino consentido, por ser magro). Há sempre um chinês gordo entre as gangs dos filmes de pontapés, ou um mexicano arrebentando os botões, barbudo, tabagista, suado e sanguinário nos faroestes. Excesso de peso é identificado com falta de escrúpulos, com gula, com a necessidade de ocupar um espaço que não lhe pertence. Ser gordo é um perigo e por isso há tanto gordo comediante. É preciso provar a cada segundo que ele é, no fundo, inofensivo.

Todo esse acervo é ditado pela aparência. O gordo não compactua com o consenso de que não faz parte da normalidade. Por dentro, ele é o que imagina ser. A única coisa que atrapalha é a falta de cálculo. Uma dobra da mesa a ser transposta por um pé virado do avesso, um obstáculo subitamente aparelhado para derrubá-lo, um canto onde não cabe seu gesto. Fora isso, é como todas as pessoas, só que é tratado como um aborto da natureza.

Hoje a obesidade é considerada doença. Nem sempre foi assim. Houve época em que existia um gordo para qualquer ocasião. Era um tipo especial, diferente, pois a humanidade não tinha ainda inventado a televisão e o fast-food, que transforma todo mundo em elefante. Mas havia também outro espécime, o gordinho, que tomava emprestado a vilania do gordo, mascarada por um perfil pragmático.

O gordinho não era o sujeito com peso muito excessivo, mas o cara um pouco redondo com excesso de auto-estima e que não se flagrava. Não era o obeso, que precisa perder uns 30 quilos para ficar gordo, mas é aquele cara que precisava mesmo de mais espaço, por isso tinha o aspecto de gordinho. Era um traidor da classe. Gostava dessa estampa, fazia parte do seu show. Usava o preconceito a seu favor.

Quando a festa estava animada e em alto astral, chegava o rei da cocada preta fazendo Vês com os dedos indicador e pai-de-todos, estendendo os braços e sacudindo a cabeça de maneira cool. Era ele. Você ia fechar um negócio e tudo andava tenso, difícil? Pois sempre tinha o gordinho que queria festejar antes da hora. Você quebrava a cabeça trabalhando e estava prestes a chegar a uma solução. Quem anunciava o feito para a chefia? Adivinhem. E era o gordinho que chamava todo mundo de cascateiro, chiando nos esses, como se fosse carioca. O gordinho era aquele chiado de chaleira criado no interior e que aspira a ser capital. Sempre tinha um, onde você estivesse.

Só porque ele era gordinho, todos precisavam prestar-lhe homenagens. O mundo nasceu para celebrá-lo. Se houvesse dança, ele dançava mais do que todos, fechando os olhinhos enquanto se sacudia todo (ridicularizá-lo seria preconceito, pois ele era gordinho). Se tivesse roda de gente importante, era o mais altaneiro, de braços cruzados, levantando a sola dos sapatos para denotar segurança e também para se sobrepor aos demais. De vez em quando, dava olhares assassinos para quem estava de fora, enquanto emitia ordens para os garçons.

Grudava-se numa celebridade e ao passar por um mortal dizia: "Já falo contigo". O gordinho era também especialista em assumir cargos de chefia antes de ser nomeado (nunca seria, mas ele tinha o direito, já que era gordinho). Por isso afrouxava a gravata , colocava os punhos na mesa, se debruçava sobre sua vítima e vibrava seu bafo de dragão para que não houvesse dúvidas sobre quem mandava ali. Mas bastava chegar algum graduado para se desmanchar todo.

Gordinho gostava de falar fino para dizer a piada mais estridente e contava com a tolerância geral pelo fato de ser gordinho. Era o boa praça na chegada, o chato quando ficava alguns meses, e insuportável depois de um ano. Todo mundo queria fazer o gordinho. Mas o cara deitava raízes fortes na corporação. Ele servia qualquer coisa e inapelavelmente acabava tendo acesso ao caixa.

Conheci gordinhos sem nenhuma instrução que fizeram fortuna colocando-se no caminho entre a empresa e os clientes. Depositando uísque envelhecido na frente de consultores recém chegados. Convencendo que podia fazer qualquer tarefa, para isso foi talhado em seu perfil de gordinho. Quando sentado na platéia, o gordinho se sacudia todo e fazia brilhar suas bochechas. Se estivesse na mesa, era o autor das piadas oficiais, pois sempre tinha um gordinho fazendo meio de campo.

A fala do gordinho era uma composição estratégica com a parte final das frases alheias. Essa espécie de eco o tornava parte integrante de qualquer roda. Imitava a intimidade como ninguém. Se alguém estivesse com cara preocupada, ele estaria lá, misturando as cartas de maneira convincente, ou seja, sendo sério e ao mesmo tempo hilariante, para que soubessem o quanto é superior à situação, como combina com tudo e como pode ser extremamente confiável.

Por isso não adiantava fugir. Era inútil tentar escapar de um gordinho. Haveria outro, para substituí-lo. No momento mais importante da sua vida, quando tudo se dirigia para um desfecho favorável, eis que chegava o gordinho. Ele te conhecia. Ele se lembrava. Ele batia com os cotovelos na pessoa ao lado, que por sinal era o jurado que iria te dar o prêmio de um milhão de dólares. Talvez não desse mais. O gordinho entrou em ação a tempo. Se você saísse derrotado desta, ele estaria na saída, com cara de boi compungido, pronto para te dar apoio. E se despedia com um tapa nas tuas costas. Você jamais iria reagir. Ele era um gordinho.

Não é que tenha espírito de porco. Isso todo mundo tem. Ele era um especialista, um mestre. Um gordinho sempre saía pela tangente para reaparecer em outro local, pois em todo lugar existia a chance de haver a invasão de um gordinho. Hoje fica difícil identificar um gordinho. Mas, não se enganem. Ele está por toda parte. Principalmente para notar, aos berros, como você engordou.

RETORNO - Imagem de Hoje: Gert Fröbe como Goldfinger.

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