Nei Duclós (*)
As multidões não estavam soltas, impregnando cidades, ou forrando estradas, como agora. Eram reunidas em lugares fechados, e na maior parte do tempo ficavam em repouso. Pessoas de todos os tipos e lugares obedeciam a fila, ou permaneciam lado a lado, mudas, extáticas, a um braço de distância uma da outra. Usavam uniformes de cores neutras, um azul marinho nas blusas e casacos, um filete branco nas mangas. Golas engomadas exageravam na pontualidade.
Os olhares eram duros, fixos, e os corpos se submetiam à posição de sentido ou se debruçavam sobre carteiras, mesas, balcões. Somavam centenas, milhares, milhões, mas eram invisíveis. Onde se escondiam, enquanto a sesta devorava a tarde, ou os descampados sofriam o jugo dos nossos passeios secretos, quando praticávamos tiro nas andorinhas? Embaixo de qual pedra se situavam? Fugiam dos nossos crimes que atulhavam quintais imensos sem testemunhas? As massas habitavam lugares excêntricos, longe de nossa vista, à espera de um sino, um alarme, um bater de palmas, para se desencadearam em ruidosa e irresistível avalanche.
Ocupávamos então nossos postos na saída dos colégios das freiras. Sapatos de seda, adornados por laços de fita violeta, transportavam as meninas. Pernas amaciadas por meias de puro cetim marchavam sob o surdo farfalhar de saias cada vez mais próximas do sonho. Aquele mar de mulher saía compacto abraçando cadernos e livros e tapando a boca na hora das confidências. O riso era abafado, como é comum até hoje entre garotas chinesas e coreanas. Tínhamos algo de oriental. O cabelo escovinha coroava a rigidez dos pescoços. Os guarda-pós desciam até os pés.
A reunião do estado-maior era ao redor de uma garrafa de soda-laranja, depositada sobre um tampo de mármore ou fórmica. O garçom às vezes chegava perto para oferecer algo ou simplesmente recolher os copos. Exibia distinção envergando gravata borboleta, enquanto o grande guardanapo pendia no braço como um pingente de ouro. Moleques, pedíamos mais uma “dose” e assim corriam as horas até chegar o momento da súbita procissão dos habitantes.
Aglomerações bem vestidas saíam dos estádios. Uma recorrente fábrica de gritos encerrava as sessões de cinema. Comícios desaguavam num tropel de votantes convictos. Um deslizamento silencioso tomava conta de calçadas e praças depois da missa matinal. Grandes brigas atraíam gigantescos ajuntamentos. E os corredores improvisados dos parques de diversões tinham o poder da imantação coletiva.
Em todo lugar havia gente saindo pelo ladrão. Mas o planeta estava vazio. O vento batia nos eucaliptos no colégio abandonado. O melhor amigo se mudara para sempre. O professor insubstituível não voltaria no fim das férias. A menina dos olhos namorava firme com alguém.
À tardinha, as multidões se recolhiam, para depois sentarem na frente das casas, a receber visitas. Saíamos então em direção ao centro, contando cadeiras preguiçosas. Em cada uma delas, alguém iria dar um aceno. Pois esse era o nosso objetivo. De toda aquela imensa quantidade, uma só pessoa sairia do miolo do devaneio para chegar até nós. Pisaria macio como fada em baile de formatura. Nosso único trabalho era tirá-la para dançar.
RETORNO – (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia seis de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
As multidões não estavam soltas, impregnando cidades, ou forrando estradas, como agora. Eram reunidas em lugares fechados, e na maior parte do tempo ficavam em repouso. Pessoas de todos os tipos e lugares obedeciam a fila, ou permaneciam lado a lado, mudas, extáticas, a um braço de distância uma da outra. Usavam uniformes de cores neutras, um azul marinho nas blusas e casacos, um filete branco nas mangas. Golas engomadas exageravam na pontualidade.
Os olhares eram duros, fixos, e os corpos se submetiam à posição de sentido ou se debruçavam sobre carteiras, mesas, balcões. Somavam centenas, milhares, milhões, mas eram invisíveis. Onde se escondiam, enquanto a sesta devorava a tarde, ou os descampados sofriam o jugo dos nossos passeios secretos, quando praticávamos tiro nas andorinhas? Embaixo de qual pedra se situavam? Fugiam dos nossos crimes que atulhavam quintais imensos sem testemunhas? As massas habitavam lugares excêntricos, longe de nossa vista, à espera de um sino, um alarme, um bater de palmas, para se desencadearam em ruidosa e irresistível avalanche.
Ocupávamos então nossos postos na saída dos colégios das freiras. Sapatos de seda, adornados por laços de fita violeta, transportavam as meninas. Pernas amaciadas por meias de puro cetim marchavam sob o surdo farfalhar de saias cada vez mais próximas do sonho. Aquele mar de mulher saía compacto abraçando cadernos e livros e tapando a boca na hora das confidências. O riso era abafado, como é comum até hoje entre garotas chinesas e coreanas. Tínhamos algo de oriental. O cabelo escovinha coroava a rigidez dos pescoços. Os guarda-pós desciam até os pés.
A reunião do estado-maior era ao redor de uma garrafa de soda-laranja, depositada sobre um tampo de mármore ou fórmica. O garçom às vezes chegava perto para oferecer algo ou simplesmente recolher os copos. Exibia distinção envergando gravata borboleta, enquanto o grande guardanapo pendia no braço como um pingente de ouro. Moleques, pedíamos mais uma “dose” e assim corriam as horas até chegar o momento da súbita procissão dos habitantes.
Aglomerações bem vestidas saíam dos estádios. Uma recorrente fábrica de gritos encerrava as sessões de cinema. Comícios desaguavam num tropel de votantes convictos. Um deslizamento silencioso tomava conta de calçadas e praças depois da missa matinal. Grandes brigas atraíam gigantescos ajuntamentos. E os corredores improvisados dos parques de diversões tinham o poder da imantação coletiva.
Em todo lugar havia gente saindo pelo ladrão. Mas o planeta estava vazio. O vento batia nos eucaliptos no colégio abandonado. O melhor amigo se mudara para sempre. O professor insubstituível não voltaria no fim das férias. A menina dos olhos namorava firme com alguém.
À tardinha, as multidões se recolhiam, para depois sentarem na frente das casas, a receber visitas. Saíamos então em direção ao centro, contando cadeiras preguiçosas. Em cada uma delas, alguém iria dar um aceno. Pois esse era o nosso objetivo. De toda aquela imensa quantidade, uma só pessoa sairia do miolo do devaneio para chegar até nós. Pisaria macio como fada em baile de formatura. Nosso único trabalho era tirá-la para dançar.
RETORNO – (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia seis de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.
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