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12 de setembro de 2007
SARTRE INFLUENCIA WOODY ALLEN
É totalmente baseado num trecho das memórias de Sartre, “As palavras” (Les Mots), o filme de Woody Allen “Dirigindo no escuro”, de 2002. Nessa biografia da sua infância, Sartre imagina a mãe reclamando que ele lia no escuro, ao que replica que “mesmo na escuridão poderia escrever”. É antológica a autoflagelação de Sartre neste livro ao mergulhar nas imposturas do menino órfão criado pelo avô. Numa de suas maquinações, o garoto imaginava escrever, “mais cego do que Beethoven foi surdo”, seu derradeiro livro. Os contemporâneos achariam um lixo, mas os póstumos, uma obra-prima.
Woody Allen usa integralmente esse parágrafo (páginas 129/130 da edição da Difel, 1967, quatro anos depois do lançamento de “As palavras” na França), inclusive a metáfora de Beethoven, para contar a história do cineasta que tem um surto psicótico e fica cego. Assim mesmo, consegue fazer o filme, que é considerado uma droga. Mas os franceses o salvam, acham que é genial. “Ainda bem que existem os franceses” diz Allen. Não vi na internet nenhuma referência sobre a ligação entre Sartre e Allen neste filme corrosivo, em que nem seus aliados, os franceses, escapam.
Ler Sartre é entender a nossa época. Absolutamente obrigatório, é o escritor que devassa as fantasias mais caras dos contemporâneos, decompõe a arquitetura de alienações e instaura um narcisismo às avessas que fez a fama de muita gente. Quer entender o narcisismo cool de nomes notórios? Leia Sartre, está tudo lá. Eles descobriram que podem se auto-imolar à vontade, sempre sairão com uma grande frase que os redimirá. No fundo, confirmam o destino do menino Sartre, tão devassado pelo cinqüentão memorialista.
O superego exposto no açougue empresta charme à arrogância intelectual, encapotada sob mil mantos de informações seguras, citações, insights e tiradas de impacto, repetidas até o enlouquecimento. Justiça seja feita: nem sempre originais, normalmente tomadas emprestadas, com citações do crédito, claro, e que vão desde “o mais belo animal do mundo”, relacionado com Ava Gardner no seu esplendor, até “é a economia, estúpido!” a resposta malcriada e de sinceridade sartriana de um assessor do candidato Bill Clinton para os adversários encarnados em Bush pai.
Uma frase dessas pede uísque, charuto e um olhar sampacu para o infinito. E a conseqüente desconstrução da cena, pois é fundamental estar sempre à tona, para evitar o esquecimento das novas gerações.
Sartre propunha-se, na infância, segundo o depoimento do adulto, falar para o ano três mil. É o que sugerem seus seguidores, sempre na maré alta da notoriedade, por méritos próprios ou não . Talvez haja hoje tanta incapacidade intelectual que não se consiga preencher o vazio que as gerações que ultrapassam agora os 60 anos vão deixando pelo caminho. Então é preciso envelhecer rápido, como impunha Nelson Rodrigues.
Não é por acaso que Nelson Rodrigues implicou com Sartre, ou melhor, com a mentalidade subserviente dos brasileiros que ciceronearam o grande escritor e filósofo na sua festejada visita ao Brasil (um deles aparava os caroços de uma fruta que a celebridade cuspia, por exemplo). Nelson talvez se sentisse incomodado com o sucesso das frases de Sartre, famosas, como “o inferno são os outros, os homens esqueceram a sua infância, o homem está condenado à liberdade”.
Nelson tinham as suas, igualmente brilhantes, mas de tão repetidas hoje parecem ser a única produção de pensamento da humanidade, como “toda unanimidade é burra” que pela exaustão age ao contrário do que propõe, se transformando num hino à burrice.
Woody Allen abusa do talento com suas tiradas. Neste “Dirigindo no escuro”, uma personagem pede para dar um Oscar a Haley Joel Osment pelo conjunto da obra. (Osment foi o garotinho de seis anos de “Forrest Gump”, e o menino de 11 de “O Sexto Sentido”, quando quase levou de fato um Oscar). Outro elogia o sol da Califórnia e avisa que vai tirar mais um câncer de pele. Em “O Escorpião de Jade”, o detetive diz que tem tanto problema que um suicídio não daria conta do recado.
Acredito que não exista bom cinema sem os autores obrigatórios. Quer dirigir um filme ou escrever um roteiro? Leia os grandes autores. Jean-Paul Sartre na primeira fila.
RETORNO - Imagem de hoje: Woody Allen pelas lentes de Arnold Newman, datada de 1996.
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