O falso humorismo entronizado na mídia funda-se nos estereótipos, nas caricaturas e nas imitações de velhas piadas do tempo da rádio, só que sem a graça original. Um dos crimes nefastos da picaretagem em cima dos telespectadores foi a exploração medíocre do gauchismo, o que é uma pena, pois se houvesse gente competente no ramo poderia usufruir do vasta anedotário sobre o Rio Grande do Sul criado e reproduzido pelos próprios gaúchos.
Costuma-se utilizar as idéias fixas para tentar desmoralizá-las. Se o gaúcho tem fama de macho, a obviedade reinante acha que pode fazer graça chamando-o de viado (ou fresco, como se dizia na campanha). Quando me anunciam uma piada sobre as pessoas da minha terra, costumo responder: “Conheço a piada, o gaúcho é viado, ha ha ha”. Já canto o mote junto com risada cretina. Dito e feito: é sempre isso. Haja.
Fui criado nas rodas de chimarrão onde a anedota ganhava contornos não apenas de grande comédia, como chegava às vezes ao nível da genialidade. Lembro que costumávamos chorar de rir com as histórias que passavam de geração a geração, e as outras, capturadas da realidade em cima do laço, graças à visão impiedosa que temos dos outros, pois num lugar onde há pampa, onde a paisagem é lisa, enxergamos de longe quem quer que seja. Não tem como se esconder: é tudo explícito e pronto. Não há morrete, nem jequitibá, nem baía mansa. É tudo no vento, na adaga e na lanterna na cara.
Ouvi e gosto de repetir uma das cenas antológicas protagonizada pelo Tibete. Para funcionar é preciso saber, primeiro, que pronuncia-se Tibete com todas as letras, com as consoantes e vogais bem acentuadas, igual a leite quente. Segundo, que Tibete fazia questão de ser autêntico, apesar de essencialmente urbano, como todos nós daquela época, em que os Centros de Tradição Gaúchas estavam ainda no início (e por isso foram criados, para espantar essa indiferença). Não sei a que altura da vida o Tibete, de família fazendeira em Uruguaiana, resolveu usar aquele grande chapéu de barbicacho, bombachas lavadas e passadas no capricho, botas sanfonadas com lustre conseguido na Borboleta, revistaria onde havia também serviços de engraxate.
Tibete acompanhava essas pilchas, que são as roupas típicas, com gestos largos, vozeirão forçado, pois seu timbre era normal, e pose de monarca das coxilhas. Correu pela cidade as suas esquisitices, pois não existia, na urbaníssima fronteira gaúcha dos anos 50, nada mais esdrúxulo do que um falso gaúcho, ou seja, um janota da cidade fazendo força para parecer do campo. Hoje é moda, pois o gauchismo venceu a parada (e felizmente que isso aconteceu, como notou Tabajara Ruas numa homenagem a Barbosa Lessa, o idealizador do movimento dos CTGs: imaginem, disse Taba, se o Rio Grande do Sul caísse na armadilha dos paulistas, que usam chapéu de cowboy e se acham country).
Mas voltemos ao Tibete (lembrem, pronuncia-se “Tí-bé-te”). Como era público e notório que ele levava a sério sua nova identidade, começaram a se manifestar os engraçadinhos, querendo explorar a conhecida verve do gauchão. Pois Tibete era boquirroto e tinha tiradas ótimas, todas embaladas pela inspiração gauchesca, mas com um toque original. Era um criador de frases memoráveis, cevado no convívio galponeiro com a xiruzada que cuida do gado.
Certa feita (como diria Oscar Mentira, célebre contador de causos da cidade), Tibete estava envolvido, em plena praça central, a Barão do Rio Branco, com o tradicional ofício de chavecar uma garota, derramando sobre a dita seus encantos e charmes oficializados em pilchas lustrosas, em lenços brancos ou colorados da melhor procedência e tudo encimado por aquele chapéu de cagar na sombra, como era costume se dizer sobre o estranho hábito de cobrir a cabeça (usávamos gomina no cabelo para segurar o topete, jamais iríamos colocar um troço de feltro que esquentava o cocoruto).
O engraçadinho passou em frente do esforçado rapaz pampeiro e endomingado, e não teve dúvidas, fez uma provocação:
-Ué, Tibete, o que tu está fazendo aí?
Arrancado de sua concentração, Tibete replicou no bate-pronto (ou no sobre-pique), à altura do susto e de sua determinação, com a voz cantada, como é costume na terra, bem na frente da moça:
- Mas não vê, tchê? Estou aqui, floreando o cu da gansa.
O "floreando" saiu como um solo de flauta, elaborado junto ao ondular da expressiva mão direita.
Lembrei essa cena para um paulistano da gema, morador no Cambuci, e exímio contador de histórias, André Falavigna. Ele decretou que “floreando o cu da gansa” é um clássico e merece ser difundido. Grande Tibete.
RETORNO - Claro que a edição de hoje é em homenagem ao 20 de setembro, data máxima da Revolução Farroupilha.
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