Miami é o excesso da América e precisa de uma intervenção cirúrgica. Vamos definir esse excesso e essa cirurgia, conforme nos narra o filme Miami Vice, de Michael Mann, e à luz do livro de Roland Barthes, Mitologias (1957). A América, terra de migrantes e de oportunidades, paga o preço por ser aberta e democrática e torna-se em Miami uma aberração, uma doença provocada pela distorção quantificada ao infinito das suas qualidades. A riqueza ali é sintoma dessa fraqueza moral que define o vício de Miami. É a culpa localizada como enfermidade do Império que se arvora a ser o juiz do mundo.
Esse excesso de recursos, lazer, dólares, luxos e paisagens não faz parte da América virtuosa, mas sim da soma dos defeitos da outra América, a falsa, a mentirosa, sensual, anárquica, a Latina. Miami foi dominada por cubanos, brasileiros, guatemaltecos, paraguaios. Esse é o mal que corrói a borda do Império. Miami é o centro demiúrgico de um furúnculo, alimentado pela podridão dos povos desqualificados do Terceiro Mundo hispânico situado do mar do Caribe para baixo.
Por estar localizada, tanto na capital desse Mal, que é Miami, quanto nas suas alimentadoras - Ciudad del Leste, no Paraguai, República Dominicana e Montevidéu, as locações “exóticas” (segundo o diretor) que “não estão no mapa” (segundo o ator Jamie Foxx) – é preciso uma operação cirúrgica globalizada, que seja a soma de agências de repressão do Império, que utilizam o meio mais identificável da natureza dos inimigos: a manha, a mentira, a falsa identidade. O truque é fingir-se de traficante para poder localizar o centro nevrálgico da doença, a fonte de suas emanações que contaminam a pureza americana.
Claro que nem sequer é citado que todo o poder dos traficantes vem do consumo da droga e não da sua produção e venda. Mas isso seria reconhecer que o problema é deles, e não do lado de cá. A dupla de detetives, um ator negro e outro irlandês, são a síntese da América inclusiva, que pode sobreviver e crescer com elementos fora de suas origens, desde que a serviço de seus interesses. Eles se disfarçam para conhecer o rosto do Mal, pessoas com nomes hispânicos como José Yero ou Jesus Montoya.
O que revela suas identidades é a própria eficiência: eles são bons demais no que fazem, transportar droga do Terceiro para o Primeiro Mundo, portanto não podem ser confiáveis. É preciso que sejam incompetentes, pelo menos um pouco, para que haja conforto nesse mundo que no Paraguai joga toneladas de embalagens de isopor na rua, a denunciar a falta de lei de terras sem História, fora da Ordem Mundial. Nesse reduto paraguaio, surge a figura de Gong Li no papel da chinesa administradora do dinheiro do cartel e que, claro, cai nas graças do machão irlandês-americano. Para isso servem as mulheres da periferia do mundo: para serem repasto da potência viril dos imperiais.
Toda essa avalanche de mistificações transforma o filme num modelo clássico de manipulação de consciências. Os espectadores brasileiros se identificam com os detetives e elogiam o roteiro bem feito, as interpretações seguras, a aventura e a ação. Mas o que deve ficar claro é a composição perversa de mitos de alienação e dominação. Os heróis são modelos de virtude, ou seja, de força física modelada por corpos cevados na correção aeróbica. Ao contrário dos vilões, que expõem a força bruta de corpos disformes e tatuados, ou a nefasta aparência de intelectuais decaídos, como é o caso de Yero e Montoya, que permanecem sentados a maior parte do tempo.
O Bem corre, se movimenta, age. O Mal aguarda, corrompe e mata. É assim que se faz cinema no coração do Império. Cinema, essa arte estratégica que substitui ou prepara a guerra. O Império já caluniou a Tríplice Fronteira de Ciudad del Leste dizendo que lá se escondem terroristas da Al Qaeda. O filme Miami Vice, que custou assombrosos 135 milhões de dólares (não há limites para financiar a política imperial) simplesmente justifica uma intervenção ao colocar o Paraguai como o centro irradiador de um capitalismo doentio, fundado nas imitações e nas drogas, e não como vítima geográfica da corrupção que vem de cima.
Uma das bandeiras mais explícitas do filme é colocar Havana como parte do estado americano de Lousiana, aliás como acontecia no século 18. “Recuperar” Havana e derrotar o tráfico por meio da inteligência e da tecnologia são os verbos desse filme perverso que merece repúdio.
RETORNO - Imagens de hoje: Jamie Foxx e Colin Farrel na foto maior, Farrel e Gong Li na seguinte e John Ortiz e Luis Tovar na de baixo.
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