Cinema, aspirinas e urubus, o premiado filme do pernambucano Marcelo Gomes, é como se o pai de família de Vidas Secas, sobrevivente na sua retirada em direção ao sul, encontrasse uma saída: o estrangeiro que chega com uma nova tecnologia, a aspirina (contra “todos os males”, ou seja, a solução final) e a dissemina pela população pobre usando um poderoso instrumento de marketing, o filme de publicidade comercial, ou seja, política.
O alemão Johann repassa para o retirante Ranulpho toda a tralha com que investiu no sertão (o mesmo cenário de Vidas Secas): um carro potente, a própria aspirina, o projetor, os rolos de filmes. O nordestino, até então azedo pela desesperança de morar num buraco e não conseguir sair dele, encontra enfim da felicidade, a herança que o estrangeiro lhe deixou em mãos. É um filme ideológico, que limpa a narrativa até o osso para poder usá-la em benefício de um determinado enfoque histórico e social.
O início do filme fornece a chave para decifrar o enigma. No sertão duro e cru, encontra um lugar a imagem do alemão que fugiu da guerra (seu rosto refletido no espelho do carro em contraposição à luz estourada do Cinema novo). Ele tenta fazer a vida vendendo a panacéia para os desesperados (supérflua, já que reconhece que os fregueses vão inventar a dor-de-cabeça só para tomar o novo remédio). Se Vidas Secas é denúncia (a miséria produzida pela exclusão social e o latifúndio), Aspirinas é pura propaganda (entregue-se ao que é estrangeiro para sair desse impasse).
E propaganda pesada, totalmente anti-Brasil.
Mas fica o não acontecido como verdade absoluta. O filme assim se insere na insidiosa calúnia histórica contra Getúlio Vargas, reforçada pelo envio de nordestinos para a Amazônia. Este seria mais um ato infame do governo, segundo a abordagem do filme. Para a selva se dirige o acuado Johann, depois de jogar seus documentos, passaporte incluído, na caatinga, sob a guarda das cascavéis. A maneira como o roteiro costura os campos de concentração à migração forçada para a Amazônia fazem de toda obra mais uma ferramenta para destruir a imagem e a herança de Getúlio Vargas. Sabendo que o filme foi generosamente cacifado pelas instituições do governo atual e do mercado financeiro, podemos também fazer nossa costura: trata-se de mais marketing contra a soberania nacional e a experiência getulista de
Mas isso nem de perto passa pelos críticos, deslumbrados com o enxugamento das cenas, com a precisão dos detalhes, com a aparente grandeza da obra. Não se pode apontar o óbvio enfoque ideológico sob pena de estarmos cometendo “injustiça”. Ora, é apenas um filme. Ora, a narrativa se sustenta por si só. Ora, que história é essa de achar que se trata de mais uma peça publicitária anti-Brasil? Que mania de achar defeito em tudo!
Pois é apenas isso. Uma peça de propaganda muito mais poderosa do que os filmes do DIP. Estes, criavam a imagem de um governo sólido num país independente. Por mais criticáveis que fossem, eram peças transparentes, de propaganda oficial. Urubus vai mais fundo: é propaganda muito bem elaborada contra a histórica decisão de lutarmos contra o nazi-fascismo. Ao nos opormos a Hitler e Mussolini, não absorvemos suas ideologias nem suas práticas. Ao contrário: mandamos nossos compatriotas para lutarem na Europa. O sangue dos heróis serviu para retaliar o ataque nazista aos navios brasileiros (uma coisa que nunca me passou pela goela; para mim, foi tudo armação, para forçar o país a entrar no conflito). Mas em Aspirinas, serviu para perseguir inocentes. Até quando essas mentiras serão encaradas como coisa normal?
RETORNO - Imagem de hoje: Johann e Ranulpho, em direção aos seus destinos, em "Cinema, aspirinas e urubus".
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