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29 de abril de 2007

ESSA COISA DE LER




A leitura é uma ilha cercada de incompreensão por todos os lados. A biblioteca, pública ou privada, é o lar do leitor abandonado
(*)

Nei Duclós

O livro leva o leitor ao teatro, ao cinema, ao circo, e não o contrário. Se você arma o circo para incentivar a leitura, é mais provável que o circo saia ganhando. Quase toda a produção audiovisual de qualidade é produzida a partir de livros. É lugar comum dizer que a palavra escrita costuma superar a obra transformada em imagens, pois, na maioria dos casos, não há substituto para a relação entre a leitura e o autor. A não ser, claro, que Richard Brooks resolva filmar Lord Jim, de Joseph Conrad.

Também implico com o caminho suave de pegar pela mão a criança até a intensidade maior de uma biblioteca. Não que o ideal seja mergulhar à força o pimpolho nas páginas árduas de uma narrativa. Isso provoca o deserto, basta ver no Orkut a quantidade de comunidades dedicadas ao ódio a livros obrigatórios da escola. Mas há um equívoco primordial. Você não acostuma alguém a ler superficialidades para depois cobrar complexidades. É melhor apostar no taco do futuro leitor: ofereça um autor completo e deixe que as descobertas nasçam naturalmente, assim como aconteceu com você, lembra-se?

É claro que não se pode ter esperanças num livro publicado em corpo minúsculo de letra, o que o torna ilegível para qualquer idade. Ou sem margens, o que evita a sintonia entre a mão que segura o trabalho para o conforto dos olhos. As margens largas dos livros antigos tinham a função de nelas repousar o polegar, como lembrava sempre o editor de arte e escritor Reginaldo Fortuna, leitor assíduo do pai da imprensa, Gutenberg. A coleção de capa verde de Monteiro Lobato é o melhor exemplo: letras grandes, entrelinhamento razoável, margens confortáveis, papel amigável e um peso que sugeria uma longa relação de amizade, pois o livro deve oferecer em excesso o que se busca na parcimônia.

Trata-se de uma armadilha: o hábito da leitura depende dela mesma, e não de expedientes externos que tateiam uma forma de fazer chegar o cidadão até as páginas impressas (ou luminosas dos e-books do espaço virtual). Lobato fisgava o pequeno leitor com o Reino das Águas Claras, uma brasileiríssima solução para atrair, pela identificação, um país que ainda estava muito próximo da roça. E depois o levava a viagens intermináveis pela mitologia grega, a geografia e a história do mundo. Não oferecia uma historinha qualquer para ludibriar as crianças. O reino citado ficava no fundo de um ribeirão do pequeno sítio e lá se desenrolava uma saga extraordinária de mistérios. Narizinho não fazia parte da auto-ajuda, era uma garota crédula que foi desafiada na sua percepção e na sua viagem cresceu, assim como aconteceu com os seus leitores. Mas essa é uma lição pouco adotada. Prefere-se cevar a historieta para depois estranhar que não leiam Shakespeare.

A leitura é uma ilha cercada de incompreensão por todos os lados. Você chega numa livraria e despencam trabalhos de luxos, com capas apelativas, sobre assuntos aparentemente interessantes. Se a procura for por algum autor definitivo, como Tchecov ou Conrad, há uma espécie de pânico em quem atende (depende da livraria, mas na maioria dos casos é isso o que acontece). Quando a dificuldade cresce, você recebe o conselho: compre pela internet. Isso expulsa o leitor que busca o óbvio, as obras que deveriam estar ocupando o lugar das inutilidades expostas.

A biblioteca, pública ou privada, é o lar do leitor abandonado. Lá ele encontra o que procura. Precisa enfrentar alguns trâmites burocráticos, além de se submeter a prazos de entrega ou mesmo ao espaço físico que convivem com as estantes lotadas. O melhor é a biblioteca na sala ou no quarto, ou, quando há compulsão pelos livros, em todas as peças da casa. Toda vez que um livro importante consegue enfim prender nossa atenção, é comum perguntar-se o que estávamos fazendo que ainda não tínhamos lido aquilo. Mas essa sensação, infelizmente, passa. Há apelos demais na televisão e no computador que nos fazem abandonar a leitura.

A frase mais impressionante que ouvi ao oferecer um livro meu para alguém desconhecido, mas que me parecia um leitor em potencial, foi essa: "Não sou dessa coisa de ler". Eles têm olhos e não vê, tem pulmão e não respira, tem pernas e não anda. Não é dessa coisa de viver. Vegeta, para escândalo de quem ainda acredita que na leitura existe a chave para resolvermos todos os impasses.


RETORNO - 1. (*) Crônica publicada neste fim-de-semana no caderno Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Marcelo Min, que tem a seguinte legenda: "Milton, 14, com fé e garrafa e fotos nas mãos. Milton mora em Santos com os pais, estuda, sabe ler, mas de tempos em tempos vem visitar seus amigos no centro de São Paulo, e passa uma temporada morando nas ruas".

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