Parece o verso de Nelson Sargento sobre o samba, agoniza mas não morre. É o caso do Brasil de Cláudio Assis
Grande parte do tempo é dedicado a uma espécie de documentário sobre o Recife, especialmente o mundo do trabalho marginalizado, feito de esforço físico em ambientes podres, e que se confina em bares de suor, pinga e cerveja ou em poses estáticas de pessoas imobilizadas em sua miséria. Esse documentário articula-se organicamente com os personagens, amarrados a doenças, fanatismo, fé tristonha (católica), fé exaltada (evangélica), necrofilia, traição, deboche e desejos jamais consumados. Nenhuma parede está intacta, o lixo se espalha por toda a geografia urbana e o plano geral da cidade é a visão sinistra de um cartão postal do Apocalipse.
Costurando a tragédia, há a intervenção de frases definitivas, como a da santidade como a forma mais inteligente de perversão ou o lugar comum de que os brasileiros gostam de ser enganados. A denúncia sem o contraponto da esperança torna tudo viscoso, como se esse fosse o destino da nação que afundou definitivamente. O bizarro fica a cargo da composição visual, magnífica, de autoria de Walter Carvalho, baseada, numa interpretação livre, no trabalho de grandes fotógrafos brasileiros, com Walter Firmo à frente. É como se Walter Firmo filmasse, com a diferença de que o grande mestre dos fotógrafos brasileiros foi em busca da nação que clamava por justiça, enquanto Carvalho mostra o país que perdeu a batalha definitivamente.
A câmara colocada no alto empurra a trama para a pequenez das situações e conflitos e privilegia o espectador que se sente acima do que vê. É uma armadilha. Nós é que estamos lá embaixo e basta o close voltar a agir para sentirmos na carne e na pele que estamos presos no mundo aparentemente delirante de Cláudio Assis. Do close ao rodopio visual, o filme é a saga circular de quem se sente morto e vive como zumbi que nem sequer tem mais a companhia confortadora dos fantasmas. O Brasil não sobreviveu nem depois da morte, não existe nem como assombração. O que existe é o horror impregnando todos os gestos e falas e a morte de um dos personagens é apenas o desfecho provisório de um futuro que tarda: a completa aniquilação da ex-nação. A maldição é continuar se movendo, morto-vivo, num cenário de ruínas físicas e humanas.
Amarelo Manga se contrapõe à estética da maquiagem tão comum em tantos filmes da Retomada. É um passo além da denúncia, pois mostrar não basta, refletir é abster-se, se insurgir é inútil. Mas, paradoxalmente, pela sua força como obra autoral sem concessões, o filme é um exercício da descolonização do olhar, uma expressão que Walter Firmo pronunciou numa entrevista que fiz com ele nos anos 80 para a revista Senhor. Os atores contribuem de maneira decisiva para essa abertura. Todos estão excelentes: Dira Paes (a recatada subvertida pela traição do marido), Chico Diaz (o açougueiro que idealiza o espaço doméstico), Jonas Bloch (o transgressor que tenta gozar com a morte), Mateus Nachtergaele (o homossexual que apunhala a amizade em favor do seu desejo), Leona Cavalli (a narrador inconformada com sua função de mulher à mercê dos fregueses que odeia), entre outros.
Fiquei um tempo rodeando Amarelo Manga. Decidi ver, por curiosidade. Uma bomba, imprescindível para a cultura cinematográfica do nosso tempo. Talvez o filme se proponha a criar uma chaga na percepção do Brasil condenado. Talvez seja a ferida aberta por onde poderemos passar para uma fase que supere tanta demência.
RETORNO - Imagem de hoje: Chico Diaz, o açougueiro, em Amarelo Manga.
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