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21 de novembro de 2006
O AVESSO DO ABISMO
A ética de Santos Dumont, o brasileiro que empreendeu sem pedir nada em troca, a não ser a eternidade (*)
Nei Duclós
Dois eventos foram fundamentais para o brasileiro Santos Dumont ficar na história: cinco milhões de dólares de herança familiar, e Paris. O dinheiro liberou-o para o estudo e as experiências e semeou nele a generosidade de quem se sentia na obrigação de retribuir o gesto da Fortuna. A cidade promoveu o ambiente adequado, cercando-o de instrumentos, recursos, estímulos. Lá, ninguém iria debochar do seu sonho nem invejar suas conquistas, como acontece numa cultura marcada pela frustração e o ceticismo.
É costume lamentar o desprendimento do gênio que decifrou o enigma de fazer o mais pesado do que o ar levantar vôo. Como pôde deixar escapar o crédito de ter determinado os princípios da aviação adotados até hoje, por meio não só do 14-Bis, que saiu do chão em 1906, mas de sua extrema inovação, o levíssimo (11 quilos) Demoiselle, feito de bambu e seda japonesa? Por que abriu espaço para os Irmãos Wright, que juraram a precedência quando de fato apenas se atiraram em queda livre com um avião de 300 quilos que jamais teria condição de desgrudar da terra?
Quando sabemos que ele liberou os detalhes técnicos do Demoiselle para que os fabricantes americanos iniciassem uma produção em série, nos perguntamos por que Santos Dumont não dispunha da visão futurista de saber que de seus inventos nasceria uma fonte poderosa de fazer dinheiro, que poderia existir até hoje? Ao abrir mão da patente, ao sonhar com um projeto de humanização do vôo, quando achou que não haveriam espertalhões para colher os frutos de suas idéias, Dumont contrariou todos os princípios do empreendedorismo, prontamente assumidos pelos irmãos Wright.
É risível as gambiarras teóricas feitas pelos que comentaram o centenário do pai da aviação, que se comemora este ano. Os Wright teriam sido os primeiros a voar, mas Dumont foi realmente o inventor do avião, disse uma fonte. O primeiro a voar foi Bartolomeu de Gusmão, no século 17, quando colocou um balão no ar. Nem essa precedência os americanos possuem. É fato que estes são especialistas em queda livre, tanto é que a falta de gravidade do universo astronáutico nada mais é do que o resultado de uma interminável queda livre pelo cosmo.
Mas se tecnicamente os americanos caíram para a glória que não mereciam, como empreendedores subiram para o Olimpo. Fizeram tudo o que manda a moderna cartilha das consultorias: patentearam o invento, que não era deles, e não intrometeram nos produtos alguns obstáculos como a ética. Pois a primeira coisa que fizeram foi colocar a invenção a serviço da guerra, exatamente o oposto de que pregava Santos Dumont. A Belle Époque, onde o brasileiro voador viveu, foi o esplendor de quase um século de paz, cortado brutalmente em 1914 com o início da Primeira Grande Guerra.
Passados cem anos, e em plena fase de responsabilidade social e outros exemplares da fauna do politicamente correto, é de se perguntar: Dumont estava certo? Será que seu gesto não foi muito mais profundo e inovador e garantiu-lhe a eternidade? O fato é que, com o centenário, aos poucos afrouxou-se o círculo de ferro da exclusão a que fora condenado. Figura admirada e cultivada no Brasil, deixou de ser um herói oficial desde que o país abriu mão de sua soberania econômica ao assumir uma dívida externa crescente e impagável. Ele jamais é citado como o verdadeiro inventor do avião, já que os verbetes das enciclopédias dão de barato que os dois fabricantes de bicicletas, encerrados no ermo absoluto do interiorzão americano, é que foram os pioneiros. E sua complicada vida pessoal, depois que deixou Paris, custou-lhe o prestígio após a morte. Para isso contribuiu sua fama e sua transformação em herói nacional. Era preciso desconstruir o mito, praga que assola especialmente o Brasil, já que as outras nações preservam seus heróis, pois neles repousam as bases do imaginário nacional.
Desterrado em sua própria terra, para usar a expressão de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o brasileiro Dumont cumpriu a sina dos que contrariam a barbárie: foi excluído, esquecido, caluniado. Mas ele agora volta com força, mesmo cercado de limitações dos que não conseguem admitir seu pioneirismo. Há livros que tentam fazer justiça. É o caso de Santos-Dumont e a invenção do vôo, (Jorge Zahar Editor, 192 páginas ), de Henrique Lins de Barros, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), que reuniu cartas, fotografias e desenhos. Há ainda O que eu vi, o que nós veremos, Santos Dumont (Hedra, 2002). E a imperdível biografia de Marcio Souza, O Brasileiro Voador (Editora Marco Zero). Entre muitos outros.
O centenário deveria promover um debate sobre a vocação do brasileiro para a inovação, sobre o desprendimento e a ética no mundo dos negócios, sobre a importância do mito na formação do país, e nos prejuízos dessa exclusão de um inventor reconhecido mundialmente, que exibiu sua performance na cara do mundo civilizado. Se Santos Dumont, apesar das provas, foi deixado de lado, é certo que o motivo é estratégia imperial. Os Estados Unidos jamais reconheceriam que não foram eles que inventaram o avião. É uma questão de honra nacional. O Brasil cultivou seu herói, mas não soube se impor. Inclusive a exclusão voltou-se contra os próprios brasileiros, que estão convencidos de que foram os Irmãos Wright que merecem o crédito.
O fato é que Santos Dumont pensava num mundo diferente, projetava-se para o futuro e só agora, passados cem anos, é possível colher alguns frutos de sua dedicação e esforço. Conforme o tempo irá passando, é certo que o herói brasileiro, pelas lições que deixou, será cada vez mais reconhecido e admirado. Inclusive pelos empreendedores, que fatalmente terão que mudar de percepção. É necessário mudar para que o mundo sobreviva. As invenções, os negócios, as nações, precisam entrar num novo patamar de cultura e entendimento, por mais utópico que isso possa parecer.
Ao contrário da queda livre, Santos Dumont é o avesso do abismo. Ensinou como transcender às limitações terrenas e levantou a luz do seu gênio diante do mundo totalmente a seus pés. É o sonho não só dos heróis, mas dos corações que deveriam governar o mundo.
RETORNO - (*) Este texto foi publicado na edição número 145, deste mês, na seção Leitura, da revista Empreendedor.
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