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8 de novembro de 2006

UM ESTRANHO BATIZADO





Ele aceitou a religião da esposa quando disse sim no casamento. A família originada ali poderia ser criada no manto e no véu, mas impôs uma condição: os filhos não deveriam ser batizados. Não sei até hoje se ele desconhecia a necessidade do batismo para o exercício da fé ou se, com sua proibição, contava que acabaria tendo a palavra final sobre o destino da futura filharada. O certo é que seu ateísmo era do tempo em que precisava se alimentar da oposição a missas, batinas, água benta. Nem se tratava de negar a Deus, que era acolhido na casa na forma de terços, crucifixos, orações, vindos da presença materna e das tias, novas e antigas, e dos primos e primas e toda a parentada há gerações no catolicismo.

O que precisava mesmo era implicar com a hegemonia da Igreja, que estava em tudo: nos domingos, nas escolas, nas ruas, procissões, rádios, jornais. Ele fazia parte da minoria do livre-pensar, dos independentes do campo e da cidade. Admirava quem se declarava publicamente fora dos dogmas e das argumentações de bispos, papas, padres. Mas uma coisa atrapalhava sua decisão: a necessidade de ter compadres, que, como se sabe, é uma condição totalmente vinculada à Igreja, e, o mais grave, ao batismo. Ele proibia o batizado, mas não abria mão de ter um compadre.


AMIZADE - O compadre é o parente que se escolhe, não o que se herda. É possível convidar alguém para apadrinhar os filhos, mas não se pode evitar de ter um irmão indesejado. Ao ceder, por amizade e admiração, uma porção da paternidade para alguém que será o padrinho do seu filho, o pai cria uma ligação para toda vida entre duas famílias. O step father, o pai substituto, empresta sua palavra à Igreja de que o pequeno pagão está convicto de entrar para a santa Igreja. A criança não pode fazer sua declaração, então o padrinho vem em seu nome jurar, como diz uma das canções que entoávamos nas missas. Mas o que fazer quando o padrinho está proibido de levar o garoto para a pia batismal? Lá na fronteira, o impasse foi prontamente solucionado. A pessoa convidada para ser meu padrinho, ao receber o convite bem na frente do galpão que existe até hoje atrás da casa da esquina que era nossa, concordou com tudo. E jamais foi me batizar, apesar de, a partir dali, se tornar um dos compadres do meu pai. Ele nunca iria desobedecer o amigo, nem recusar o convite. Assim é a têmpera dos homens da fronteira: palavra dada, palavra cumprida. E um convite é uma honra e deve ser acolhido no coração da amizade, que lá naquelas plagas, costuma ser verdadeira, portanto, eterna.

PALAVRA - Como eu não podia ser batizado, por proibição paterna, fiquei até os três anos de idade ameaçado da condenação na outra vida. Isso afligia minha mãe, que não podia convencer o padrinho convidado a trair a palavra dada. A solução foi tão prática quanto a declaração do compadrio. Minha mãe pediu para sua irmã, minha tia Maria, professora rigorosa do primário em colégios do subúrbio da cidade, a levar pela mão o garoto em pecado e batizá-lo, sem que o pai soubesse. E assim foi que Tia Maria me levou um dia, sem festas nem cerimônia, para que o padre me aspergisse a água benta. Deve ter sido impactante o evento para mim, pois me contam que, quando cheguei em casa, falei bem alto o que se passara. Por muitos anos imitaram meu jeito de dizer (que era com a boca mole, como costumavam acusar os que tivessem sangue dos Molinari, o sobrenome materno da minha mãe). Me jogaram água aqui, eu dizia, para escândalo de todos, que participavam do pacto de silêncio. Não fala nada! me sussurravam, impedindo que eu manifestasse meu júbilo por ter sido banhado por uma água desconhecida.

PADRINHO - Foi assim que meu pai ganhou um compadre e eu um lugar no seio da Santa Madre Igreja, onde me aninho até hoje, com todas as forças. Só conheci de fato meu padrinho no dia 3 de novembro, quando lancei meu novo livro, de conto e crônicas. Sabes que tens um padrinho? Não sei, respondi. Pois, tens. Sou eu, Adalberto Pelegrini. O senhor de óculos e boné, falando e caminhando lentamente, então me mostrou uma foto do meu pai, dedicada a ele, meu padrinho. O seu Ortiz estava vestido para a caça, de arma em punho, com algumas perdizes a tiracolo. Estás igual a teu pai, me disseram. E eu repliquei: não é verdade, estou maior. Fiquei maior em corpo, talvez para compensar as décadas em que fui um fio de gente e todos se escandalizavam o quanto eu era magrinho, ou seja, invisível. Cresci como nunca, talvez para chegar à altura da pia batismal que, em segredo, me colocava no redil das almas pias. E hoje já passo da vida adulta, chegando perto daqueles que um dia me criaram e que se foram para todo o sempre.

SOBRENOME - Meu estranho batizado não teve festa nem celebração. Não me foi permitido comemorar, mas nenhuma criança comemora o próprio batismo. Na prática, eu tinha apenas uma madrinha, minha tia Maria, rigorosa professora do primário no subúrbio. Agora tenho um padrinho, ao qual beijei a mão pela primeira vez. Ele representa meu pai, seu grande amigo. E coloquei na dedicatória a brincadeira que meu irmão Luiz Carlos fez depois que Adalberto virou compadre: Nei Pelegrini. Ganhei mais um sobrenome, secreto, como meu batismo, afetivo, como tudo o que os anos trazem de volta. Pois o tempo é a palavra coração, como digo no meu livro No Mar, Veremos, que autografei também no dia três, para o poeta Ricardo Silvestrini, que veio com um exemplar debaixo do braço. A palavra fica e dignifica quem a carrega como um tesouro.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: a catedral de Santana, vista da praça Barão do Rio Branco, em foto de Anderson Petroceli. Foi lá que me batizaram. 2. Foi Walter Galvani, cronista, romancista, jornalista, que estava ao meu lado, que me chamou a atenção para esta crônica. Você já contou esta história? ele me perguntou. Ainda não, respondi. E ele fez um gesto com a mão que dizia: veja como está perto o assunto para uma crônica. Galvani, no dia 3, estava orgulhoso: nas mesas de autógrafos da Feira do Livro de Porto Alegre naquele dia, sentavam-se três afilhados seus no jornalismo. Gente que começou, como eu, tendo Galvani como primeiro diretor de redação.

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