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4 de outubro de 2006
ONDE ESTÁ A LIBERDADE?
Vejo tardiamente Piratas do Caribe - A maldição do Pérola Negra (2003), filme cheio de citações cinematográficas (de Cidadão Kane a Apocalipse Now, de Os Três Mosqueteiros a Star Wars, e muito O Gavião e a Flecha, o clássico com Burt Lancaster) e seleciono, entre as inúmeras sugestões desta aventura que já ganhou uma seqüência, o assunto representação da liberdade, mesmo que isso pareça inapropriado para um épico produzido pela Disney. O pirata é o ser livre, em oposição ao engessamento do império inglês. Traga de volta o horizonte, diz Johnny Depp, brilhante no papel do capitão pirata Jack Sparrow, saído dos quadrinhos e do teatro de rua.
SONHO - Saquear, roubar, matar, transgredir o império é o sonho do cidadão amarrado a uma sociedade previsível, uma remuneração pífia, um endividamento crescente e uma falta endêmica de relações verdadeiras e sentimentos. Mas não se trata do velho esquema das compensações. É, antes, a exploração do imaginário, território já minado pela opressão, mas o único que pode oferecer alguma liberdade. Um filme não vale pelo que compensa, nem pelo que sugere, mas pelo que cultiva. Um espírito livre precisa de alimento e esse pode vir de uma grande obra ou de um blockbuster. Pois essa é a prova dos nove da liberdade: não está amarrada ao que se convencionou chamar de cultura séria, embora deva muito a ela. O espírito livre pode voar com uma grande bobagem e isso serve para todo o resto. Se você só lê os clássicos (e isso seria uma bênção) ficaria igualmente limitado. Mario Quintana dizia que poeta não lê poesia, lê os classificados. Quintana é insuspeito: traduziu grandes clássicos da literatura.
ABISMO - O embrulho é quando a besteira toma conta de todos os espaços e não há mais margem para você escapar atirando-se do convés. O mar está também dominado, junto com as ilhas, desertas ou não. Somos Harold Lloyd pé ante pé na beira do abismo urbano. Por isso, talvez, tenha tanto filme de gente saltando dez metros de altura. Desde O Tigre e o Dragão e Matrix, não há mais limite para o andar. A humanidade presa na sala onde tem uma bomba relógio, conta com a tradicional solução do cinema, em que algo dá errado e o protagonista se salva. É para cortar o fio verde ou o vermelho?
LITERATURA - Piratas do Caribe também bebe na literatura que fez a alegria de muitas gerações de leitores, como a Ilha do Tesouro, de Robert L. Stevenson. A caverna do filme é a de Ali Babá (dos livros e das matinês). A luta nos mares é puro Emilio Salgari. Pela narrativa são resgatados antigos atletas de circo como Errol Flyn e Burt Lancaster. Para quem estranhar a quantidade de citações, que mencionei acima, vamos aos detalhes. Star Wars influiu naquele encontro de Johnny Depp no bar, quando vai atrás de uma tripulação. Apocalipse Now são as tochas da caverna no momento em que será feito sacrifício. O Gavião e a Flecha é o famoso truque do barco emborcado no fundo do mar, que permite a respiração de quem pretende tomar o navio. Cidadão Kane é quando a maçã/rosebud escapa da mão do pirata. Os três mosqueteiros é aquele chapéu do galã do filme, Orlando Bloom (Will Turner), quando ele salva o capitão pirata. E por aí vai.
LUCIDEZ - Liberdade é costurar o incosturável, é ver relação onde aparentemente não há, é se inspirar no talento alheio para descobrir o que funciona na cultura de massa. Liberdade não é seguir cartilha, render-se aos lugares comuns e achar que a lucidez é propriedade particular.
RETORNO - 1. Imagem de hoje: a bela Keira Knightley (Elizabeth Swann), nas garras de Geoffrey Rush (Capitão Barbossa). 2. A edição de hoje não escancara as comportas para a porcariada que nos empurram goela abaixo. "Piratas" é um tremendo filme, daqueles que a gente via às 16 horas (a sessão nobre) aos domingos, o famoso "cinema das quatro".
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