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1 de setembro de 2006
A VOLTA DA FÁBULA
Nei Duclós
Quando éramos crianças, queríamos viver no mundo maravilhoso em que os animais falavam. Fomos atendidos. Não da forma certa: escutando narrativas alegóricas que encerravam alguma lição no final. Mas da forma errada: convivendo com todo tipo de sons guturais emitidos pela falta de produção de pensamento. Essa comparação chega a ser uma injustiça aos animais, já que a ciência começa a notar o que todo mundo sabe: que os bichos pensam e sonham. E que suas linguagem são bem mais complexas do que imaginávamos.
Enquanto nos distraímos com a proliferação de equipamentos de uso veloz, a exclusão de Plutão do Olimpo planetário, e a falta de vacina para a malária, há um derrapar nas velhas fórmulas em plena era do conhecimento. Essa situação mantém atual a tese de Thomas Kuhn, o pensador alemão que escreveu livro clássico sobre as revoluções científicas: a de que a ciência se comporta de maneira obscurantista e só vai adiante quando a geração que defende o velho paradigma morre ou se aposenta. Ele cita Newton, que só foi aceito cem anos depois que suas revelações vieram à tona. Kuhn não é bem visto pelos seus pares, por motivos óbvios, mas sempre que vejo um documentário sobre animais dou-lhe razão.
Sob a capa científica, os documentários costumam nos apresentar os animais engessados em comportamentos já conhecidos. Neles, os bichos jamais brincam, eles estão apenas treinando para a vida adulta. Se fazem algum exibicionismo com suas penas e bicos, é para perpetuar a espécie. Toda manifestação de inteligência é forçosamente colocada no território lúgubre do instinto. O uso de ferramentas por parte dos chimpanzés, o gato que abre porta pulando sobre o trinco, ou o pássaro que acha o alimento driblando armadilhas, são acontecimentos que ainda não romperam definitivamente a casca do preconceito humano.
Mas isso está mudando, e graças à fábula. A Marcha dos Pingüins, por exemplo, nos diz o quanto podemos aprender sobre o comportamento dessas resistentes criaturas do deserto ártico, sem recorrer às certezas ditas científicas. Nesse premiado documentário de Luc Jacquet, os animais falam e expressam seus sentimentos enquanto as imagens reportam a tarefa praticamente impossível de procriar em ambiente tão hostil. A linguagem poética redime a aridez da trajetória de sacrifícios e coloca identidade em cada protagonista da história, enquanto destaca a importância fundamental do trabalho em grupo.
São várias as lições desta fábula premiada. Primeiro, a responsabilidade que implica o prazer do acasalamento. Segundo, a necessidade de compartilhar tarefas na difícil obra de gerar um descendente. Terceiro, a transcendência da passagem sobre a terra, que tem a ver com mistérios soberbos de um universo pautado pela grandeza. A admiração confessa do diretor pelo que os pingüins fazem repassa para o espectador, que assim fica mais confortado diante das dificuldades diárias.
Luc Jacquet assumiu que um documentário é apenas uma versão. Apostou no potencial de fábula que havia nas diversas marchas em direção à vida e à morte. E não nos engana com uma linguagem considerada científica. Ele optou pela poesia, não por ignorar as pesquisas (ele é biólogo), mas para poder enxergar melhor o que nos parece tão familiar.
RETORNO - 1. Este texto foi publicado hoje, dia 1º de setembro de 2006, no caderno Variedades do Diário Catarinense. Estou publicando, até metade do mês, minhas crônicas como interino da coluna do escritor e jornalista Sérgio da Costa Ramos, que está de licença. 2. Hoje é aniversário do meu irmão Luiz Carlos. Longa vida, saúde, dinheiro e felicidade ao nosso Lisca.
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