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4 de setembro de 2006

TEMPOS INFALÍVEIS





Nei Duclós

Um dos efeitos mais nocivos do evolucionismo mal estudado é a pretensão de que estamos à frente do que veio antes de nós. Como se os avós tivessem existido só para preparar a nossa magnífica chegada à terra. "Já naquele tempo" é uma expressão muito usada, revelando a grande surpresa que é a constatação de que o mundo existia antes de nós. Um dia, quando me fizeram a pergunta "como eram os anos 50?", respondi, exausto da visão limitada sobre o passado: vivíamos em árvores e nos comunicávamos por sons selvagens. Aí fomos evoluindo até chegarmos ao auge da civilização, que é a conversa interminável ao celular num ambiente coletivo.

Quando a evidência é brutal demais, quando o gênio se manifesta de maneira explícita, e ele não está mais vivo, costumamos dizer que fulano "estava à frente do seu tempo". Ou seja, o sujeito confrontava o registro em cartório da sua época e como não se comportou conforme nossas definições, acaba fazendo parte de uma esquisitice, de algum evento bizarro que contraria a linha ordeira dos fatos que se sucedem obedecendo a uma lógica infalível. A arrogância que vemos hoje faz parte dessa certeza (talvez por isso se diga tanto "com certeza"): que o passado é digno de pena e deve ser visto sempre da mesma maneira.

A verdade é que somos criaturas zeradas a cada geração. Não nascemos com a teoria da relatividade fazendo estrepolias no nosso cérebro de nenéns. Temos que aprender a comer, falar, andar. O cálculo infinitesimal é uma conquista árdua, assim como a noção mais ou menos exata de como funciona um computador. Não recebemos de bandeja o que os antepassados, pobres figuras, levaram mais de uma vida para criar. Precisamos percorrer o mesmo caminho, já que toda geração parte do nada até chegar ao seu esplendor.

Num drible esperto, o que acaba se impondo é a marcha da espécie e não o esforço dos indivíduos. Não foi fácil, dizem, sairmos da condição de macacos até chegarmos à humanidade, como se Darwin fosse culpado de semelhante equívoco. Descendemos de uma espécie de hominídios que viram vantagens na postura bípede e se aprofundaram no uso de ferramentas, e não dos macacos propriamente, nos diz o evolucionismo clássico. Mas isso é só um detalhe. O importante é achar que a obra humana foi fazer o chimpanzé virar o Brad Pitt.

Quando vemos uma obra-prima absoluta como Luzes da Ribalta (1952), de Charles Chaplin, notamos que a arte deitou raízes fundas no futuro e que ver um filme desses hoje é tomar um banho de civilização perdida. Não que o passado seja a maravilha total que todos devam celebrar. Mas sim o fato de que há 54 anos um filme existe para nos dizer algumas verdades. Uma delas é que uma geração, ao chegar à suprema essência da sua arte, como foi o caso de Chaplin e de seu imortal personagem, o comediante Calvero, acaba sendo enterrada precocemente pela burrice do tempo.

Cada cena é pura poesia, é a imaginação no poder, que nele deveria permanecer para todo o sempre. O gênio pincela nossos dias com sua monumental lucidez e talento e dele não devemos nos afastar. É preciso aprender humildemente, não apenas com o que nos chega de herança verdadeira, mas com o que nos rodeia e não prestamos atenção. O tempo não é infalível, e por isso oferece a chance de ser tão encantador.

RETORNO - 1. A imagem, magnífica, é do Gênio: Charles Chaplin no auge da sua arte em "Luzes da Ribalta", o filme que levei 40 anos para rever (a oferta da outra obra-prima, "Luzes da cidade", ocupava todos os espaços). 2. Esta crônica dá seqüência à minha interinidade na coluna do jornalista e escritor Sérgio da Costa Ramos, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. Sérgio está de licença até o meio deste mês.

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