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16 de setembro de 2006

O GATILHO DO TEXTO





Nei Duclós

Esta é a rua Bento Martins, em Uruguaiana, onde me criei. A casa amarela à esquerda, de esquina, é onde vivi por mais de dez anos, os principais da minha vida. Graças a Anderson Petroceli, fotógrafo maior da fronteira, posso mostrar esse pedaço da infância e adolescência, que ainda está lá, pulsando. À direita, o monumental Colégio Santana, minha verdadeira universidade. No lugar do edifício, havia a casa dos Mena Barreto, um telhado coroado por um coqueiro, que ornamentava a inesquecível paisagem. Será que o coqueiro da foto é o mesmo daquele tempo? Naquela casa, escrevi os primeiros poemas e textos. A seguir, a crônica de hoje no Diário Catarinense, que encerra minha interinidade no caderno Variedades, na coluna do jornalista e escritor Sergio da Costa Ramos.

Quem acampou na chuva, e possui apenas um fósforo e está só, no ermo; ou quem tenta tirar faísca de madeira verde, e não consegue fazer uma pequena chama (nem sequer uma labareda), sabe o deslumbramento que é um raio depois de horas de nuvens carregadas. Como a natureza pode fazer corisco apenas com água suspensa?

Se houve alguém que um dia tentou chegar na primeira chispa, deve ter desistido muitas vezes, depois de uma vida vendo o fogo surgir quando menos esperava, ou ficando longe do incêndio quando mais queria. Ele sentou-se numa pedra numa tarde em que se prenunciava a tempestade e notou o susto de uma veia saltada de néon no azulão escuro do céu. Só um milagre poderia ensinar alguma coisa sobre esse mistério. Assim também acontece no texto.

Acumular histórias, informações, falas, não faz nenhum milagre. O que pega é o gatilho do texto, a faísca que bota fogo na montanha de coisas que juntamos, o grude que garante a massa, quando tudo finalmente faz sentido. Comparo o resultado dessa faísca que gera vida com um esqueleto imantado. É a espinha dorsal da narrativa, que deve ser sólida pela concepção, pela idéia que a sustenta. Os outros elementos são coadjuvantes, grudam nele naturalmente como atraídos por um imã. É a informação, o detalhe, o dado, a declaração.

O esqueleto imantado é a narrativa que atrai com prazer a inocência das frases soltas e faz delas parte de si. O encantamento provocado por um texto ou uma história vem dessa junção de criaturas dispersas, que acabam formando algo único.

É importante termos essa arquitetura bem clara na mente para evitar que intervenções secundárias ocupem o seu lugar. No descampado, ao redor da fogueira, só os grandes narradores sabem manter acesa essa força que por sua vez atrai olhares e atenções. É a mágica do narrador vocacionado.

Vi uma reportagem na TV sobre pescadores do nordeste. O personagem entrevistado, velho pescador de Fortaleza, falava em vento misturado, do nordeste e sul ao mesmo tempo, e era debochado constantemente pelo repórter. Foi a fagulha que faltava para a história que eu guardava num canto. Descobri naquele instante que a mudança contínua era o universo de quem estava sempre dependendo das águas para viver, e quem não participava daquele mundo não conseguia entender esse redemoinho. Fiquei meses com uma narrativa em potencial, querendo sair. Mas foi aquele clarão que juntou as peças dispersas.

O talento dorme dentro de nós como Deus na barca. Lá fora, a tempestade. Entramos em pânico, vamos afundar. Despertamos então aquele que nem toma conhecimento do nosso susto. Ele se levanta, se equilibra na precária superfície e faz um gesto. As nuvens se dissipam e ressurge o dia. Ele então pergunta por nossa fé. Onde estava a fé quando a barra pesou? Essa pequena e deslumbrante explicação de Alan Kardec para um trecho do Evangelho serve para nos revelar o segredo. Acredite que vai conseguir. Carregue-se. De repente, o céu se ilumina com um clarão. É tua alma que implodiu diante do sagrado. Você atingiu a forja dos deuses.

RETORNO - Há ainda um texto como interino, sobre Hitchcock, no caderno Donna DC deste fim de semana. No próximo domingo, voltarei às minhas crônicas mensais no meu espaço próprio no Donna.

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