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27 de setembro de 2006
O BARCO SOBRE A MONTANHA
Nei Duclós
Pelo excesso de uso, o globo tornou-se quase todo escuro. Apenas na base um líquido viscoso se concentrava, luminoso, como querendo pingar para fora da redoma. Talvez fossem mariposas e vagalumes amassados, que penetraram no que pensavam ser um abrigo. A energia que alimentava a esfera não tinha mais força para torná-la brilhante, como acontece ciclicamente, quando então o conjunto parece um balão de gás que sobe rapidamente para as estrelas. Essa escassez de uma fonte mais poderosa de luz fazia com que a esfera, de rosto negro, apresentasse, no bojo iluminado aos seus pés, o aspecto de um barco destacado no céu limpo e negro. Imaginei que esse lastro misterioso, idêntico a um sorriso, escancarava uma boca de comédia, embora o clima fosse de extrema sobriedadede. O visgo pesava e fazia com que o barco navegasse um pouco acima da montanha, lugar onde permaneceu por horas, enquanto eu tentava decifrar a charada, instalado na varanda, vizinha da noite infinita.
OCEANO - Era como as lanternas antigas, carregadas no ombro, por viajantes que cruzavam o deserto aproveitando a friagem da madrugada. Eles caminhavam penosamente, com sua luz a tiracolo, para que pudessem ver peixes e lobos, já que no território do sonho tudo se mistura. A montanha, parte de uma serra com seu desenho perfeito em contornos curvos de tamanhos diversos, era a onda que tentava lamber o casco daquela embarcação que jamais descia até à água dura da mata, que subia até o topo da elevação. Havia um movimento pendular que enganava os sentidos. Aquilo navegava sem sair do lugar, singrava um mar de corcovas fixas e parecia tentar escapar da atração que sentia para enfim pousar no cume desse oceano bruto. Mas havia algo que suspendia o globo, como se realmente alguém a levasse no ombro e essa criatura, invisível, tinha a força de dez gigantes.
ESPETÁCULO - Se a base iluminada imitava o barco, que não se decidia se lambia as ondas ou não, o resto da esfera se mostrava impassível, satisfeita talvez com seu aspecto de breu contornado por leve fio de seda brilhante, que fazia uma perfeita bainha curva em forma de coroa. Era, essa parte escura, como a vela do barco a desprezar o vento, já que se mantinha pela majestade do que imaginava ser. Gostaria que me notasse, mas lembrei que todo o espetáculo era compartilhado pelos habitantes dispersos desta ilha, que vieram morar aqui para espiar o enigma. Estamos marcados pelo inverno, que incomodou na sua despedida, e o frio intenso tinha nos deixado exaustos de tosses e febres. Agora, curados, repousávamos forçando a barra das estações, querendo que o clima favorecesse o encontro na varanda gelada. Mas ainda é cedo para o desfrute da paisagem. A aparição no horizonte, barco circunspecto de uma noite que não dispensou ainda os favores do inverno, nos avisava que só uma parte de nós brilha, enquanto o resto permanece envolto numa túnica de mistério.
CHANCE - O importante é que por algum tempo ficamos absortos no que vemos, deixando de lado o que nos atormenta. Notamos que o Tempo é indiferente a tantos problemas e que podemos lançar sobre aquele barco uma corda para nele amarrar o pensamento privado de grandeza. Ficamos ali, presos na Lua Nova, como náufragos à espera de uma chance. Talvez o Navegador, penalizado com nossa situação, puxe a corda e nos coloque dentro. Ficaremos então no fundo da embarcação, com o olhar deslumbrado para a grande abóbada escura que nos envolve, e que mostra, na superfície, um fio de renda brilhante. É quando, de lá, abanamos para nós instalados na rede da casa, enquanto aguardamos que a navegação encontre seu destino. Mas é tarde e vamos dormir. Quando dormimos, o navegador suspira e define o rumo para longe, onde nosso olhar jamais alcança. Ele nos deixa sós, com a imaginação carregada por um líquido viscoso de mariposas e vagalumes esmigalhados. Os pés do Navegador pisoteiam aquela massa de almas encantadas, enquanto sopra o vento da Noite interminável, companheira dos sonhos, irmã de fantasmas, musa da poesia que enfim nos abraça.
RETORNO - Imagem de hoje: Garcia Lorca, autor do verso "o barco vai sobre o mar e o cavalo na montanha". Misturei as duas imagens para falar do assunto de hoje, que me assombrou ontem à noite. Garcia Lorca, Poeta Maior.
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