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14 de setembro de 2006

LÁ NO FUNDO





Nei Duclós

Meu novo livro, "O Refúgio do Príncipe - Histórias Sopradas pelo Vento" (Editora Cartaz, 150 pgs., R$25,00), está chegando às redações. Ele é uma seleta da minha literatura em texto curto e se insere no meu trabalho de escritor, que vai do ensaio à poesia, do conto à crônica, do romance à memória. Faz parte de uma obra que está em sua maior parte na internet, mas já conta com cinco volumes impressos, de 1975 a 2006. Estou gratificado com mais este lançamento e aguardo a manifestação dos contemporâneos, para os quais tenho dedicado as palavras que escolho todos os dias, vocação que me mantém vivo culturalmente. A seguir, a crônica de hoje, publicada no caderno Variedades do Diário Catarinense.

O último assento é escolhido por uma questão de estratégia. De lá é possível ter visão completa do recinto, seja sala de aula ou ônibus. É possível monitorar o movimento de todos, que estão de costas, portanto não enxergam o que se passa atrás. É uma espécie de anonimato que dá uma série de vantagens, como atingir nucas com projéteis variados, saber o que fazem quando acham que ninguém está olhando e até dormir sem que desconfiem de nada.

Quem senta na frente está ansioso para se mostrar à autoridade, quem fica atrás já desistiu de ser visto, ou nunca quis virar alvo de observação alheia. Há uma linhagem de maus alunos que sentam no fundo, ou então de falsários que fingem prestar muita atenção instalados no último assento, o que lhe dá um ar de compenetração de quem não está escutando absolutamente nada. Há bruscos arrastar de cadeiras lá atrás, gritos espasmódicos de alguém que foi atingido e não pode entregar os pontos, sob pena de ser visto como um traidor.

Os últimos lugares formam um pacto de resistência. É uma espécie de gang que compartilha o que era antes traquinagens e hoje é sabe-se lá o quê. Por isso há escolas pedagógicas que eliminam as carteiras colocadas em fila. Colocam os alunos em roda, o que pretensamente é mais democrático, quando todos devem mostrar a cara de maneira totalmente explícita. Não há como se esconder numa roda, mas imediatamente o pessoal que sentava no fundo cuida para que o círculo vire o caos e, para solucionar o problema, volta-se à formação original.

Nos derradeiros assentos dos coletivos estão os pragmáticos, que permanecem perto das portas. Antigamente se entrava por trás e se saía pela frente. Mas a turma do fundo acabou com esse hábito, pois aproveitavam a distração do cobrador e do motorista e se mandavam sem pagar a passagem. Hoje não tem conversa. Você pode sentar lá atrás, mas antes tem que morrer com alguns trocados valiosos na catraca.

Quando tradicionais ocupantes dos últimos assentos se encontram, tudo pode acontecer. Uma conversa falando de famílias partidas, de separações, de violências de todas as espécies. Eles se misturam aos estudantes ansiosos para descer, já que ficam na iminência de algum surpresa daqueles que conversam animadamente sobre problemas domésticos, trabalhos mal pagos, dores de cabeça. No fundo se descobre que vivemos num país partido e que ficar um pouco à frente é a maneira que temos de escapar da barbárie.

No meio da conversa, um dos participantes do encontro se levanta num salto e abre a janela com fúria, fazendo estrondo. Todos tremem. Olhares ocultos de cabeças que se viram para trás. Os certinhos temem a turma que ocupa o último lugar. Esses estão preparados para tudo. Tiram a cabeça para fora da janela, peitam o motorista que demora a sair do terminal, ameaçam algum passageiro que olha feio. Mas às vezes são apenas grupos animados que nas noites de sexta-feira voltam para casa ocupando os assentos marcados pela exclusão.

Ou no final dos semestres, em que os estudantes riem do tempo que passou e se preparam para a folga. Ficamos lá atrás quando não queremos mais participar desse jogo bruto que é comportar-se diante da mesmice.

RETORNO - A imagem é de Helcio Toth, Barco. Tinha colocado por engano a foto de Bill Murray numa cena de "O Feitiço do Tempo". Paciência.

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