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6 de agosto de 2006

VER, EM STEVE SPIELBERG





Guerra dos Mundos, de Steve Spielberg, é uma charada cinematográfica que propõe o verbo ver como a chave do enigma. Os invasores surgem no olho do furacão. Descem até suas máquinas enterradas no chão, ou seja, onde não eram vistas, apesar de estarem situadas bem no miolo da civilização (Nova York, Boston, especialmente a América). Para escapar, era preciso não ser visto. Para evitar que eles avançassem sobre o olhar inocente, foi preciso tapar os olhos da criança. Quando as máquinas emergem do solo, a população inteira está de olho no que está acontecendo.

A fabulosa seqüência inicial, quando Tom Cruise (esse ator correto e talentoso, apesar das inúmeras bobagens das quais participou) procura ficar perto dos acontecimentos, de olhos bem abertos, assim como o resto dos habitantes do seu bairro, diz tudo sobre o filme. Em nenhum momento se desvia o olhar, só para fugir. Escapar é ficar longe do alcance daquele olho gigante da máquina invasora. A solução do enigma fica a cargo de Tim Robbins, impressionante como sempre (não lembro de nenhuma performance ruim desse grande ator): quem sobrevive, nas ambulâncias onde trabalha, são apenas aqueles que ficam olhando firme para o para-médico. Olham e pensam, diz o personagem de Tim, um sobrevivente que, para escapar, se esconde num porão, procura ficar invisível.

Mas ele comete um erro: quer enfrentar o inimigo poderoso com as velhas armas, com as lições da América pioneira. Tom Cruise também comete o mesmo erro, pois coloca uma arma na cintura, que só serve para apontar contra seus semelhantes, jamais para o invasor, que não é atingido pelas armas tradicionais. A bola de beisebol que quebra a vidraça no início do filme, fruto do desentendimento entre Tom e o filho, abre um olho no vidro. É quando o pesadelo começa: alguém nos viu esse tempo todo e vai atacar. Qual a saída, além de ficar fora do alcance do olhar mortal? É enxergar o que não é visto a olho nu. É lá, onde mora a resistência, oculta por bilhões de anos de evolução genética, que está a força para derrotar os aliens.

A verdadeira guerra é entre o mundo visível e o invisível. Ou entre o mundo oculto que de repente mostra a cara e o mundo aparente e explícito (para os olhos) da vida diária. A guerra inverte a percepção: o que estava fora do olhar torna-se hegemônico, e a civilização que nos conforta com suas coisas visíveis praticamente desaparece.

Na cena impressionante em que um periscópio vivo e em forma de cobra tenta enxergar quem se esconde no porão, os seres de outro planeta ficam olhando para uma foto. Passam de mão em mão. Eles enxergam apenas o visível. Não ver o que está sob a toca do universo invisível foi a sua ruína. Tom só enxerga a dimensão real do perigo quando a câmara de televisão mostra como os invasores agem: descendo pela luz (visível) eles chegam até a máquina (oculta) e fazem a perseguição com um grande olho central dominando as ações, e olhos acessórios por meio dessas cobras/periscópios que rastreiam os habitantes apavorados.

Um detalhe, também na primeira seqüência: o olhar catatônico de quem viu demais nos remete aos filmes de zumbis e de invasão de alienígenas dos anos 50 e 60. É uma referência, e uma explicação, para esse olhar sonâmbulo, zumbi, que permeou nossa infância. Ver torna-se um pesadelo e o choque desse contato transforma os humanos em seres pasmos diante do inimaginável.

Li algumas críticas sobre o filme e os equívocos são recorrentes. Primeiro, acusam Spielberg de americano. Mas o que ele mais poderia ser? A antropologia nos ensina que precisamos analisar os fatos e as culturas nas suas especificidades. Spielberg jamais será outra coisa do que um americano. Também dizem que ele usou o velho truque do deus ex-maquina, a intervenção que vem de outro lugar, para resolver o problema. É exatamente aí que reside a qualidade do filme: a coerência com que ele desenvolve e cria o desfecho da trama é que importante. Também invocam outros filmes como melhores do que este. Quando lançou Tubarão e suas outras obras, caíram de pau em cima dele. Agora invocam o que malharam para criticar este Guerra dos Mundos. É muita estreiteza de visão.

Spielberg é um criador poderoso e nos legou imagens que vão ficar para sempre. Guerra dos Mundos é um filme assustador que merece ser visto pelo que ele é: um exercício em cima da mais importante vetor do cinema, que é o verbo ver. Ver, em Spielberg, neste filme, é uma porta para a sua permanência como cineasta do primeiro time. Americano, por certo. Profundamente comercial, naturalmente (o que é coerente com sua cultura). E com a força e a profundidade dos verdadeiros criadores. O que não é pouco, dada a enorme quantidade de asneiras com que nos brindam todos os dias.

RETORNO - Imagem de hoje: Tim Robbins, Tom Cruise e Dakota Fanning no porão em "Guerra dos Mundos": o susto de ver demais.

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