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28 de junho de 2006

O IMPÉRIO DA CARACTERÍSTICA





O futebol sempre foi assim: disputado, travado, duro, com brilhos esparsos. A diferença é que ele era mais narrado do que visto. As lendas se formaram no tipo de narrativa usado para descrevê-lo. Aquelas jogadas das quais não se dispõe de fotos, momentos vividos em circunstâncias especiais, biografias descritas como heróicas. Para alimentar o mito, sobrevivem cenas filmadas de grandes lances, de craques insubstituíveis, pintados de ouro.

Mas basta ver uma cena da copa de 70 para verificar o quanto os jogos eram lentos, como havia espaço para o movimento dos jogadores. Na memória não é diferente: selecionamos apenas os raros rompantes de gênio, os gols que fizeram a glória de nossa juventude. Por isso, diante da tela fria, que nada mais é do que outra representação da Copa, bocejamos com tanta falta de aventura, de grandeza épica. Lamentamos a falta de talento, o craque fora de forma, os erros sucessivos e quando alguém como Ronaldo sai na hora certa para aliviar a torcida com um gol providencial, dando um nó no goleiro, há reclamações. Mas ele joga tão mal! Só Parreira não enxerga!

MIOLO - Nós, talvez, é que estamos ermos de uma narrativa à altura da importância do evento. Estamos nas mãos dos sabe-tudo, dos oportunistas, dos que viram a biruta conforme o vento e encastelados em suas poltronas pedem para os jogares terem juízo e, o que é pior, se vinguem, como se vingança ganhasse jogo. Esses narradores empobrecem o que está sendo disputado de maneira heróica e colocam tudo nos enquadramentos já testados, já que os fatos obedecem ao que chamam de característica. Podem notar: essa é a característica do jogo sul americano, essa não é a característica do fulano, ele saiu de suas características,e, claro, a jogada só poderia ser essa porque assim é a característica de quem está no miolo do drama.

RALO - O clima era idêntico na época de Nelson Rodrigues, que remava contra a corrente da opinião generalizada de que o Brasil não era nada perto das outras chamadas potências do futebol. Não basta hoje sermos pentacampeões do mundo, estarmos nas finais há três copas e nos dirigimos para mais uma final, se tudo der certo. O importante é o que temos formado na cabeça: de que não jogamos tudo o que sabemos jogar e por mais que a gente vença, sempre haverá uma Itália, uma Argentina, uma Alemanha, para nos fazer sombra. É o contrário: somos os maiorais porque temos raça, estratégia e humildade e jogamos como todo mundo, só que nos destacamos em alguns lances que nos colocam na cara do gol. Temos também sorte. A Copa é como as Olimpíadas: em um segundo, anos de esforço podem ir para o ralo; por meio milímetro, podemos ganhar a partida ou sermos eliminados. E sem essa de característica: o futebol é um desafio à percepção e adora desmentir os sabichões.

JUÍZES - Dizem que pegamos os piores times da Copa (antes, eram temidos), que os árbitros estão a nosso favor (e a favor da Itália, que ganhou um penalty de graça, por supuesto) e que nem somos sombra da Argentina (lembram da goleada em Servia e Montenegro? a festa acabou quando sofreram na mão do México). O Brasil ganha Copas do Mundo porque aprende as lições. Com 1950, descobrimos que tínhamos condições de levantar a taça, bastava não se deixar embalar pela euforia, não contar com o ovo dentro da galinha. Com 1954, descobrimos que era preciso tenacidade para chegar até o fim. Foi graças a 1954 que na final de 58 o Didi pegou aquela bola no fundo da rede do Brasil e foi caminhando até o meio do campo dizendo que iríamos ganhar. Com 1982, vimos o que pode fazer o favoritismo e a certeza de que somos os melhores em qualquer tempo. Com 1998, o Brasil aprendeu que ficar demasiadamente em cima de um craque pode levar tudo à ruína (e foi graças à convulsão de Ronaldo que Felipão insistiu em dispensar Romário em 2002; ele precisava ganhar sem um craque salvador).

SAMBA - Essas lições formam o acervo do futebol pentacampeão do mundo. Não é a firula, o samba, o totózinho, o calcanhar. É o rompante, o chute certeiro, a posse de bola, o contra-ataque, a experiência, o sangue, o suor, a lágrima. Esse acervo compõe o peso da camisa canarinho. Com ela nos apresentamos para o mundo. Não somos nós que sambamos, nós é que fazemos o mundo sambar. Pode dar erro, pode haver derrota, mas isso será mais uma lição. Aprendemos que não adianta nos vingar de 1950, aquela final faz parte da nossa herança, como se houvesse um pacto eterno entre Brasil e Uruguai, que no jogo fatídico teriam misturado o sangue num corte que jamais cicatriza. Não poderemos jamais nos vingar da França, aquela final é deles, ponto.

POEMA - Não faz mal que amanheça devagar, nos diz Geir Campos, num dos mais belos poemas da língua (Alba). As flores não têm pressa, nem os frutos. Sabem que a vagareza dos minutos, adoça mais o outono por chegar. Por isso não faz mal que devagar o dia vença a noite nos seus redutos de leste. O que nos cabe é ter os olhos enxutos e a intenção de madrugar.

RETORNO - A imagem de hoje é mais uma foto de Marcelo Min, publicada no seu obrigatório Fotogarrafa.

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